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Os povos indígenas seguem invisíveis

Os povos indígenas seguem invisíveis

Artigo por RED
25/07/2024 14:47 • Atualizado em 25/07/2024 19:33
Os povos indígenas seguem invisíveis

Por ANA INÉS ALGORTA LATORRE*

Aconteceu durante a enchente. Segundo levantamentos feitos pelo CIMI, mais de oitenta aldeias indígenas, e mais de 8mil famílias indígenas, foram diretamente atingidas pelas chuvas do início de maio. Uma das aldeias guaranis atingidas pela cheia foi destruída por ação do DNIT, enquanto seus habitantes estavam refugiados em um abrigo. Aparentemente, houve a necessidade de consertar um duto que passava sob a aldeia. Porém, os indígenas não foram consultados ou avisados da destruição que aconteceria, e, quando as águas baixaram, não tinham mais suas casas para onde retornar.

Com a catástrofe que o Rio Grande do Sul viveu, a questão dos animais domésticos e a condição em que são mantidos em nossa sociedade ganhou visibilidade. Nada mais justo. Muitos se mobilizaram: movimentos, grupos e pessoas individuais de todo o país vieram até o Estado auxiliar nos resgates e nos cuidados com os animais resgatados. Até hoje o tema permanece em pauta, pois são inúmeros animais que ficaram sem tutores. O poder público (ainda que menos do que deveria) tem promovido reuniões e debates, e tentado organizar grupos de trabalho para lidar adequadamente com a questão.

Além de cães e gatos, o resgate de cavalos e outros animais chamou a atenção da opinião pública em nível nacional e internacional. O cavalo Caramelo, resgatado de cima de um telhado onde aguardou por alguns dias, tornou-se uma celebridade. Não se critica, aqui, a necessária mobilização em prol dos animais. Ao contrário, considero que essa mobilização vem tarde, respondendo a um problema que se arrasta há décadas (ou séculos?) sem a devida atenção do Estado e de boa parte da sociedade.

Porém, em comparação com a comoção nacional e internacional que cerca a questão animal, percebe-se pouquíssima repercussão quanto à situação dos povos indígenas. Passada a fase aguda da enchente, e iniciada a etapa de reconstrução, já praticamente não se busca saber como estão as famílias indígenas e qual o tipo de apoio de que necessitam neste momento.

A situação se agrava, quando, na semana passada, ataques concertados a várias aldeias indígenas pelo país têm como alvo, também, duas comunidades indígenas do Rio Grande do Sul. A comunidade Kaigang Fag Nor, acampada às margens da rodovia no Pontão, em área de domínio público, no Norte do Estado, sofreu um ataque a tiros durante a noite. Os tiros foram dados em direção aos barracos onde as famílias se abrigavam. Os indígenas buscam retornar a suas terras originárias, de onde foram expulsos por fazendeiros em 2014. Os tiros foram dados na noite de 10 de julho. Na madrugada de 14 de julho, um veículo da comunidade indígena foi incendiado.

Na mesma noite, a Tekoha Pekuruty, em Eldorado do Sul, às margens da BR 290, a mesma comunidade que teve as casas destruídas por ação do DNIT durante a enchente, também sofreu um ataque com tiros contra os barracos, que partiram de uma caminhonete que parou perto do acampamento dos indígenas.

Durante a tarde do domingo 14, grupos de fazendeiros armados atacaram comunidades Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, baleando um homem indígena, em terra indígena cujo processo de demarcação se arrasta por inércia do Estado, sendo que já está identificada e delimitada. Os ataques têm acontecido aos olhos de todos e com a certeza da impunidade. Os indígenas temem por suas vidas.

Nesta sexta-feira dia 19 de julho, grupos de fazendeiros armados cercaram a retomada tekoha Tatarendi, dos Avá-Guarani, no oeste do Paraná, próximo à fronteira com o Paraguai. A Força Nacional, presente no local, teve dificuldades em conter os fazendeiros, que estavam agressivos. E o Ministério dos Povos Indígenas também esteve no local para tentar mediar a situação. Os ruralistas se retiraram no início da noite, sem que tenha havido qualquer solução. Aparentemente, o confronto iniciou depois da entrega de um mandado de reintegração de posse aos indígenas por parte da Polícia Federal.

Denúncia apresentada pelas crianças durante a grande assembleia Avá Guarani / Foto: Diangela Menegazzi

O CIMI cobra das autoridades estatais que se concluam os processos de demarcação das terras indígenas, que as comunidades recebam a devida proteção e que os responsáveis por esses ataques sejam identificados e punidos.

Não se está a falar de casos isolados. E sim de práticas que têm crescido à sombra de governos que pregaram a violência como forma de resolver os conflitos e impor as soluções dos mais fortes. Essas práticas têm feito muitas vítimas, várias delas apenas neste ano de 2024.

Porém, esses atos criminosos não parecem comover a opinião pública. Já está naturalizado o fato de que, nessas disputas por terras, os indígenas são mortos covardemente. Isso não causa mais espanto. Antes de se chegar a esse terrível resultado, são colocados como menos humanos nas narrativas de diversos grupos (não esqueçamos aquele deputado gaúcho que se referiu a indígenas e outros gruops como “tudo o que não presta”, e que logo depois se elegeu deputado federal com significativo número de votos). Assistimos, nos dias atuais, a um fenôneno de “humanização” de alguns animais, enquanto povos indígenas e outros grupos racializados são des-humanizados.

A falta de alteridade que leva a sua invisibilização nada mais é do que uma manifestação do racismo estrutural e do etnocentrismo de nossa sociedade, em que o modo de vida ocidental é tomado como regra e o homem branco europeu é tido como a referência de ser humano. E também da necropolítica, em que certos corpos que se afastam dessa regra são vistos como corpos “matáveis”, cujas vidas têm menos valor, ou nenhum.

*Ana Inês Algorta Latorre, juíza titular da 2ª Vara Federal de Carazinho (RS), vice-presidente do Comitê Pan-Americano de Juízes de Direitos Sociais e Doutrina Franciscana (Copaju)

Foto da capa: Indígenas Guarani-Kaiowá fortalecem reivindicação contra violação de direitos humanos em visita da Delegação da CIDH. Foto: Ascom – MPF/MS

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