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OS IMPACTOS AMBIENTAIS VISÍVEIS E INVISÍVEIS DA CHEIA DE MAIO DE 2024

OS IMPACTOS AMBIENTAIS VISÍVEIS E INVISÍVEIS DA CHEIA DE MAIO DE 2024

Artigo por RED
03/06/2024 13:32 • Atualizado em 03/06/2024 17:39
OS IMPACTOS AMBIENTAIS VISÍVEIS E INVISÍVEIS DA CHEIA DE MAIO DE 2024
De OTAVIO AUGUSTO BONI LICHT*

Observando a impressionante imagem que foi captada em 31 de maio de 2024 pelo satélite Sentinel2, é possível observar alguns fatos importantes relacionados aos efeitos das brutais precipitações que provocaram as maiores inundações e desastres ambientais na grande bacia do lago ou rio Guaíba e nos vales dos seus afluentes, e talvez a maior já ocorrida no país. Observa-se que uma grande parte da Laguna dos Patos, especialmente suas porções norte e leste, está manchada de marrom e que essa mancha se estende até o canal da barra de Rio Grande. A tonalidade marrom é mais intensa nos locais onde é maior a quantidade de finas partículas de argilas e óxidos de ferro em suspensão na água, o que deixa a água muito turva. É de notar, entretanto, que há regiões a sul e oeste da laguna, que praticamente não foram afetadas, e outras com turbidez muito alta. O formato e a distribuição dessa mancha se devem ao fluxo preferencial no canal da laguna, que foi intensificado pelo enorme aporte de água no Guaíba e que busca chegar ao Oceano Atlântico. Mesmo que a diferença de altitude no cais Mauá, em Porto Alegre, em relação ao nível do mar seja de apenas 3 m, o fluxo aumentou muito em virtude da enorme contribuição que o Guaíba recebeu das cabeceiras dos seus afluentes, durante o curto período em que houve uma espantosa precipitação de cerca de 800 mm de chuva em poucos dias. Ao passar pelo estreitamento no extremo sul da laguna e pelo canal da barra de Rio Grande, alcançando enfim o Oceano Atlântico, a mancha segue quase perpendicular à costa, com uma velocidade aumentada pelo regime de confinamento no canal e nos molhes da barra. Já em mar aberto, a mancha vai se ampliando e sofre uma deriva em direção ao norte, devida à influência das correntes marítimas paralelas à costa, de sul para norte. Nesse espalhamento em mar aberto, a mancha adquire um aspecto de pluma já que vai gradativamente se dispersando. Na imagem acima, essa pluma composta por partículas sólidas em suspensão na água, se estende por uns 10 km desde que entra no oceano, mas essa é uma visão parcial da porção da pluma mais próxima da costa, pois mesmo que ela seja gradualmente diluída, deve alcançar grandes distâncias.

A mancha de alta turbidez devida ao material em suspensão transportado pelo fluxo na laguna dos Patos, passando pelo canal da barra de Rio Grande e o comportamento da pluma no oceano Atlântico. Imagem do satélite Sentinel2 de 31 de maio de 2024.  Fonte: Hans van Boven, https://www.linkedin.com/posts/hans-van-boven-a50742106_meaningful-view-of-the-sediment-discharges-activity-7202497719981027329-MItX/?utm_source=share&utm_medium=member_android

Para os habitantes da região da bacia hidrográfica do Guaíba e margens da Laguna dos Patos, os efeitos humanos, psicológicos e materiais provocados por esse evento climático extremo foram incalculáveis e deixarão profundas cicatrizes. O mesmo se pode dizer para as micro, pequenas e grandes empresas de todos os ramos da economia, que sofreram perdas de área plantada, equipamentos, maquinários, veículos, estoques e impossibilidade de entregar vendas já contratadas. Enfim um verdadeira catástrofe social e econômica.

Todavia, um ponto ainda pouco explorado pela imprensa, diz respeito aos impactos ambientais visíveis e invisíveis, os quais possivelmente provocarão efeitos de longo prazo, e que ainda são difíceis de serem estimados e quantificados.

Para os cientistas envolvidos com algumas áreas do conhecimento como a geoquímica ambiental, o diagnóstico e monitoramento ambiental, a identificação de áreas contaminadas, a gestão de áreas urbanas, a biologia lacustre e marinha e a oceanografia, observar essa imagem de satélite, onde se destaca a mancha marrom que turva a água da laguna dos Patos, causa calafrios. Esta sensação se justifica pois sabemos que ela começa nas cabeceiras de grandes rios que drenam áreas agrícolas onde são aplicados agrotóxicos e fertilizantes, que atravessam regiões com densa ocupação humana de alta complexidade, residencial e industrial, e que dispõem de uma cerrada malha viária e rodoviária. Na passagem desse fluxo d’água avassalador que começou em altitudes próximas dos 1.000 m e rapidamente chegou ao nível do mar, aniquilou cidades, residências, indústrias, plantações, cemitérios, farmácias, supermercados, postos de abastecimento de combustíveis, açougues e matadouros, criações de suínos, aves e outros animais, depósitos de resíduos sólidos urbanos, industriais e hospitalares, tanto os bem organizados quanto os lixões, e a rede de esgotos cloacais sofreu refluxo e passou a inundar as áreas urbanas. A torrente arrancou e transportou fragmentos sólidos e resíduos químicos, que contribuíram para um aumento da turbidez da água. Nas cidades alagadas, a fauna própria da rede de esgotos foi expulsa de seu habitat ‘natural’ e invadiu a superfície. Enfim, um total desarranjo do sistema natural e do modificado pela atividade humana, sob os aspectos físicos, químicos e biológicos, caracterizando um gravíssimo impacto ambiental.

Nos trabalhos de limpeza e recuperação das regiões atingidas, está sendo removida uma quantidade gigantesca de resíduos capazes de flutuar, como madeira, papel, plásticos variados, que foram transportados e se depositaram nas ruas, estradas, margens de rios e ilhas, na laguna ou que continuaram flutuando até alcançar o oceano. Com o passar do tempo, uma parte deles vai submergir e se depositar no fundo da laguna e do mar, outra vai ser lançada à praia e outra, mais persistente, vai continuar flutuando e ser transportada pelas correntes marítimas com destino incerto. Mas se essa parcela visível dos detritos é preocupante, a parte invisível é talvez ainda mais.

Para quem ainda não percebeu a verdadeira dimensão e a complexidade desse tema, é necessário explicar que alguns processos invisíveis ocorrem no interior dessa grande mancha marrom. Dentre eles se destacam a hidrólise e a fotólise que consistem, respectivamente, na divisão das moléculas de alguns compostos químicos pela ação da água ou da luz e energia solar, dando origem a moléculas de outros compostos. Também importante e invisível é a adsorção que consiste na atração de moléculas de compostos orgânicos e inorgânicos e sua adesão às finas partículas de argilas e de matéria orgânica em suspensão. Semelhantemente, a absorção é outro processo invisível pelo qual materiais estranhos entram, se distribuem e são incorporados em materiais porosos como a madeira e alguns tipos de plásticos, como se fizessem parte deles.

Nas regiões costeiras, marginais e distantes dos canais, onde a energia do fluxo é atenuada, poderão se depositar as finas partículas de argila, matéria orgânica, madeira, plásticos e papel nas quais os compostos químicos estão adsorvidos e absorvidos. Dependendo das condições e dos condicionantes locais, poderão até se formar depósitos argilosos que estarão contaminados com poluentes de diversas origens. Esses processos ocorrerão nas margens e ilhas dos rios, do lago Guaíba e da Laguna dos Patos, mas sabemos que uma grande parte dessa mancha marrom está sendo levada para o oceano. No momento em que ocorre o encontro da água doce com a salgada, as partículas de argila sofrem o efeito de outro processo que é denominado de floculação, isto é, as partículas sólidas se agrupam formando grumos. Por serem maiores e mais pesados, esses grumos tendem a se depositar no fundo do mar, serem empurrados para as praias produzindo uma água muito turva ou até mesmo formando pelotas argilosas.

Ao nos depararmos com esse cenário ambiental extremamente preocupante, é importante salientar que todos esses processos são naturais e vêm acontecendo, mesmo quando há menor quantidade de dejetos e detritos, e isso ocorre não só no Rio Grande do Sul mas em muitos outros lugares do mundo, sob intensa ocupação do território e com fisiografia similar. Eles apenas foram magnificados aqui e agora, por força da enorme quantidade de detritos e de resíduos produzidos durante o evento climático extremo que atingiu o Rio Grande do Sul em maio de 2024.

Por mais doloroso e traumático que tenha sido para a sociedade gaúcha passar por esse evento e começar a trilhar a fase dura da recuperação que vem pela frente, é uma necessidade, quase uma obrigação tentar apreender com a tragédia. Esta é uma oportunidade para que gestores públicos, empresários e a população compreendam a necessidade de estabelecer um zoneamento ecológico-econômico e o planejamento urbano e de segui-los à risca pois eles são produtos do melhor conhecimento, e também de atender e obedecer a estudos e previsões baseadas na melhor ciência, pois será inaceitável e injustificável a repetição de erros, falhas e omissões.

* Portoalegrense de nascimento e de coração, geólogo pela UFRGS em 1973, mestre, doutor e pós doutor em geoquímica, professor colaborador do Programa de Pós Graduação em Geologia da UFPR.

Foto: Imagem de Friedrich Teichmann por Pixabay

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