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Opinião

Os golpes, as mídias e o fascismo à espreita

Os golpes, as mídias e o fascismo à espreita

Artigo por RED
22/01/2024 05:25 • Atualizado em 23/01/2024 09:45
Os golpes, as mídias e o fascismo à espreita

De SANDRA BITENCOURT*

Um ano da tentativa de golpe e um novo golpe na tentativa de manter a cidade – de Porto Alegre- sob controle da cidadania.  Este mês registrou dois acontecimentos que ilustram muito bem as ameaças que rondam a democracia e a conduta de atores e instituições determinantes para a qualidade democrática.

Vamos começar pelo dia 08 de janeiro, marcado em atos por todo o país, pela tentativa de golpe do bolsonarismo e de setores da extrema direita (envolvendo empresários, militares, religiosos e outros grupos). Em Brasília, o governo Lula reuniu os demais poderes para reafirmar que a Democracia não fora abalada. Falas contundentes do STF, da PGR, do próprio executivo, de governadores, do Senado, condenaram as agressões aos poderes, revelaram estratégias de desinformação premeditada e, inclusive, apontaram caminhos e necessidades de proteção democrática como a regulação das plataformas que hoje privilegiam a circulação e a monetização de notícias fabricadas para confundir.

A oposição, como era esperado já que em muito é parte da tentativa golpista, não compareceu e acusou o governo e o STF de politização da data. Parte das mídias aderiu a esse argumento falacioso. Comentaristas e analistas políticos da mídia corporativa naturalizaram que há, dentro dos marcos da Democracia, quem defenda aqueles atos antidemocráticos e endossaram a tal politização da data. 

Infelizmente, falta manejo de conceitos aos comentaristas e sobra certo cinismo nas análises. 

O ato de 08 de janeiro foi um ato político. Não poderia ser diferente e sim e teve como protagonista o presidente e o partido ameaçados pela sanha golpista. Mas isso é totalmente distinto de politização.  

A politização, de acordo com o Dizionario Garzanti, envolve interferência e invasão da política em áreas que lhe são estranhas e que não lhe dizem respeito (desnaturando-as e corrompendo-as). É uma doença da política, a sua hipertrofia.  A politização também pode ser entendida, de uma perspectiva bastante individual, como uma inclinação exorbitante e compulsiva para a ação política, um viver obsessivamente consciente da política e dos políticos, o interesse excessivo e quase exclusivo para questões políticas.

Ao contrário disso, a política está ao serviço da vida. Não a vida ao serviço da política. Foi essa política a serviço da vida que mobilizou o encontro e os discursos em Brasília. Ao criticar um ato político em defesa da política, das instituições e dos sistemas de pesos e contrapesos da República, parte da mídia mantém aquecido o elo golpista. Faz isso como ameaça e como possível monstro de manobra para os interesses (nem sempre confessados) que precisam ser preservados para a manutenção dos grandes players num jogo no qual estão reservadas apenas as arquibancadas para a cidadania. A mídia funciona como juiz, VAR e narrador da partida. Ela joga junto embora simule que apenas transmite os torneios. 

É nessa interseção, de um ator ainda parte responsável pelos regimes de visibilidade e construtor simbólico das consciências e da formação da opinião, que entra o segundo acontecimento registrado nesta terça-feira em Porto Alegre.

A eleição de representantes dos bairros centrais de Porto Alegre [Região1] no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental [CMDUA, que elabora o Plano Diretor] revelou que a direita, a prefeitura, os grandes empresários do setor imobiliário estão dispostos a agir para derrotar a participação popular na discussão do futuro da cidade que hoje se vê cercada por excessiva cobiça na exploração do solo. Em muitos sentidos é um tipo de golpe na escolha livre e na discussão ampla do interesse público e não apenas do apetite voraz de quem se julga dono da cidade (aqui faço um destaque para o primoroso trabalho jornalístico do Sul 21 com a série do mesmo nome, Os donos da Cidade). 

O economista André Augustin fez um levantamento detalhado de quem são e o que representam as chapas que concorrem ao CMDUA. Vale dar uma espiada no perfil dele no Twitter. Tudo referenciado e com evidências, com as intrincadas alianças, relações  e interesses de partidos, instituições e incorporadoras, tendo a prefeitura como uma espécie de capatazia para atender às aspirações mercadológicas. Aliás, colunista do Grupo RBS deixou claro qual era a atribuição do prefeito, na ocasião de sua eleição: uma espécie de síndico ou gerente, não mais. Jeferson Miola publicou um relato exemplar do que aconteceu numa escaldante e lotada câmara de vereadores de Porto Alegre neste último dia 10. Vale reproduzir um trechinho: Funcionários das construtoras eram despejados de ônibus e vans na Câmara de Vereadores, onde se realizou a votação. De acordo com a legislação contemporânea, trata-se de transporte ilegal de eleitores. Um crime, portanto. Na ausência de comprovante individual de residência para poderem votar na Região1, os funcionários portavam declarações de endereço comercial emitidas pelas próprias empresas. Apesar da validade discutível, tais declarações foram aceitas. 

Ele registrou depoimentos dos trabalhadores arregimentados para votar, com promessas de horas extras e transporte. 

Apesar do esforço ilegal de transportar trabalhadores, das filas de cinco horas, da falta de água e da intransigência da secretaria municipal responsável por promover a votação, a chapa das incorporadoras perdeu a votação. Foi uma vitória épica dos ativistas que, a despeito de esquerda e direita, pretendem uma cidade civilizada e para todos. 

A matéria do grupo RBS ocultou esses acontecimentos, não descreveu o pesadelo de cidadãos que aguardaram em pé, por horas, em ambiente sem ventilação e sem água. Tampouco mostrou as fotos dos ônibus despejando trabalhadores portando comprovantes de residência emitidos por suas empresas empregadoras. Muito menos citou a nota do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Optou por uma matéria em que coloca duas visões de futuro da cidade, como se a manipulação e o interesse privado estivessem ausentes de todo o processo e como se fosse legítimo impor, pela força do capital, esse excesso de uso do solo como planejamento de uma cidade para poucos. 

Logo em Porto Alegre, farol da participação popular, da inclusão cidadã, do respeito ambiental. 

Os golpes estão aí, travestidos de liberdade de expressão, a espreita. Mais do que nunca é hora de pensar o futuro com todos os democratas, humanistas, progressistas. Estas eleições para o conselho de urbanismo são, nesta semana que marca o ataque brutal à democracia, um alerta inescapável. Como sempre, precisaremos lutar muito ainda.


*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Imagem em Pixabay.

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