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Os Eleitores e o Botão do f*da-se
Os Eleitores e o Botão do f*da-se
Por SANDRA BITENCOURT GENRO*
Quem tem filhos adolescentes sabe que cada vez que se deparam com algo incômodo, que não têm disposição para enfrentar, sentenciam: f*da-se. É como uma espécie de botão mágico que ignora condicionantes e permite seguir adiante sem a preocupação com o que molesta resolver. As disputas mais recentes e os últimos resultados eleitorais ao redor do mundo me dão a impressão de que muitos decidiram acionar esse botão.
Cientes da desumanidade, das mentiras fabricadas, das violências, das contradições, das soluções mirabolantes, decidem permitir seu desconforto e sua raiva soarem mais alto e decretam: f*da-se! Ele se aconselha com cachorros mortos e sugere venda de órgãos? F****, vou escolher mesmo assim porque a vida tem sido injusta comigo. Ele é misógino, racista, xenófobo, bilionário sonegador, figura repugnante? Não interessa. A inflação me incomoda, acho adequado culpar imigrantes, f*****. Figura abjeta que faz arminha até para crianças, vendedor de cloroquina que não se importa com mortes, pois não é coveiro, quatro casamentos esquisitos e discurso incongruente de defesa da família tradicional? Não faz diferença, f*****. Negacionista sanitário e climático, recordista em secretarias e órgãos com corrupção, sabujo dos ricos na entrega da cidade? F***** em dois turnos!
Esse estado de ânimo e essa complacência com a corrupção de valores e princípios que antes nos eram caros, principalmente na hora de decidir o voto, tem favorecido uma extrema direita selvagem, gananciosa e com apetite insaciável para devorar tudo, desmontar sem precisar de maiores disfarces ou moderação para mandar às favas sentidos ultrapassados como humanismo, igualdade e outros quetais que influencers turbinados já sepultaram. Essa normalização do bizarro, feio, sujo e malvado tem deixado a esquerda perplexa, sem direção e sem discurso, balbuciando ofensas juvenis como “pobre de direita” na falta de outra estratégia de aproximação com as massas de trabalhadores que julgava representar. É tão distópico que nem a caracterização do que é hoje o trabalhador está assegurada. A própria carteira de trabalho virou elemento retórico para insultar com memes e cortes dignos de engajamento.
Ainda temos percentuais de resistência, chamados em defesa da democracia e reações que nos permitem respirar um pouco. Mas cada vez mais frágeis e mais escassos.
Nos horrorizamos. Nos perguntamos incrédulos: como toleraram o escândalo (todos são fartos em escândalos). Pois bem, estes últimos personagens ungidos pelas urnas nos distintos quadrantes das américas, não se enquadram nos critérios para caracterizar um escândalo político, já que este, tão bem conceituado por Thompson (2002), se baseia em reputação e confiança, em que revelações sórdidas abalam a imagem constituída. A sordidez, na atualidade, faz parte da biografia. Não há o que revelar, descobrir, denunciar. Os próprios se apresentam como tal, não ocultam “que pintou um clima”, não negam que são sonegadores, homofóbicos, violentos, que roubaram senhas de aposentados. Ou que trapacearam para alcançar dinheiro e fama. Estamos em um vale tudo, onde essas credenciais são vistas como aceitáveis. Ou mais. Desejáveis e, portanto, boa parte não vota apesar disso tudo, mas por motivo dessa conduta e perfil.
A palavra escândalo surge por primeira vez em inglês no século XVI, com o sentido grego, de queda moral, tropeço, derivando para ações ou falas indecentes e difamatórias ou circunstâncias ignominiosas. Nada que hoje em dia afete determinadas escolhas, considerando o desejo de superar o mal-estar e construir de algum jeito um modo de estar no mundo que inclua determinados consumos, desejos e estéticas.
Sobre o Discurso político, nos ensina Charaudeau (2008), que a boa escolha de valores não é suficiente. “A instância política- ou a instância cidadã em seus movimentos de reivindicação ou de revolta- deve saber apresentá-los”. Será essa maneira de apresentar os valores que os fazem adquirir sentido no espaço público. E dentre essas maneiras, convém satisfazer certas condições, de simplicidade e de argumentação.
Se dirigir às massas, que é um conjunto de indivíduos heterogêneos e díspares em tudo (nível de instrução, possibilidade de informar-se, capacidade de raciocinar e experiência de vida coletiva) implica colocar em evidência, diz o autor, valores que podem ser partilhados, compreendidos pela maioria, sem os quais ficamos isolados.
Que valores são estes para que o campo progressista possa disputar emoções, racionalidades alteradas e até afeto? Quando me dirijo aos trabalhadores deve ser para dizer o que? Certamente devo me lembrar que não se trata mais daquele operário do chão de fábrica. Quando quero dialogar com as mulheres, todas elas, inclusive as que vivem na periferia com filhos em profusão e pais ausentes, devo lembrá-las do patriarcado ou buscar pontos concretos de esperança, respeito e pertencimento (cada uma com a sua fé e a sua crença de estar no mundo)? Se olho para os jovens que não sonham mais com uma CLT e um emprego fixo, devo incendiar como os seus corações?
“A condição de simplicidade acarreta sempre a perda de um pouco de verdade”, nos diz Charaudeau. Mas a perda de um pouco de verdade pode ser o instrumento para fazer as pessoas- na sua vida cotidiana- descobrirem a parte da verdade que toca a sua humanidade sufocada.
*Sandra Bitencourt Genro é Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.
Foto de capa: Reprodução
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