?>

Destaque

O Último a Sair, Por Favor, Apague a Luz

O Último a Sair, Por Favor, Apague a Luz

Economia por RED
06/09/2024 18:23 • Atualizado em 06/09/2024 18:29
O Último a Sair, Por Favor, Apague a Luz

Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

As Estimativas Populacionais para 2024 e o “Ajuste” do Censo 2022

O Censo Demográfico de 2022 resultou de um esforço hercúleo por parte do IBGE. Sua realização teve de superar enormes dificuldades: cortes de verbas no Governo Bolsonaro, epidemia de Covid-19, alteração de datas, trocas de direção do órgão (associadas a tentativas de simplificação dos questionários, com impactos negativos sobre as informações produzidas e a comparabilidade dos Censos), dilação de prazos, finalização do processo em um ano de eleições presidenciais em que a polarização política atingiu níveis jamais vistos anteriormente no país, etc. Diante de tantos desafios, é natural que tenha sido ampliada a margem de erro de alguns (vale frisar: alguns; não de todos) resultados.

Como a distribuição de recursos federais e estaduais para os municípios leva em consideração – dentre outros critérios – o tamanho da população, as associações de municípios se levantaram para questionar os primeiros resultados do Censo. A Confederação Nacional dos Municípios chegou a pedir um novo Censo Demográfico (veja aqui). E, como é natural, a imprensa fez eco (aqui). Em geral com aquele tom a mais, que torna a notícia mais atraente, dramática e algo sensacionalista.

O que os críticos parecem não alcançar entender são dois elementos cruciais. Em primeiro lugar, o Censo não é realizado primariamente ou fundamentalmente para “contar as pessoas”. Essa é uma de suas funções. Mas sequer é a mais relevante. Na verdade, os Censos subestimam sistematicamente o número de pessoas no país. Como o sabe todo e qualquer demógrafo. O segundo elemento é que o próprio Censo gera informações suficientes para, com o apoio de informações secundárias, ajustar a subestimação que lhe é imanente.

Em agosto de 2024, o IBGE apresentou sua estimativa da população do ano corrente (212,3 milhões de pessoas). E, simultaneamente, anunciou que o cálculo da população de 2024 estava baseado na revisão da população censitada em 2022, que passou de 202,95 milhões de pessoas para 210,86 milhões de pessoas (veja aqui). Alguns veículos de imprensa voltaram a carga, denunciando os “erros do IBGE” e jogando água no moinho do descrédito sobre as estatísticas oficiais (veja aqui).

Para além de um certo apego à denúncia e ao escândalo, o que vem à luz com tantas críticas à atuação do IBGE é a ignorância acerca dos princípios mais elementares do levantamento de informações estatísticas. O primeiro deles é que todos os levantamentos de base declaratória – inclusive os Censos – contêm vieses importantes definidos pelos interesses daqueles que declaram (ou não!) suas rendas, patrimônio e padrão de organização familiar, etc. Para dar um exemplo radical: existem bígamos? Sim, existem. Seria de se esperar que os respondentes aos Censos informassem essa condição ao recenseador? Claro que não. Outro exemplo: em 2017 foi realizado o Censo Agropecuário. Os recenseados declararam que, em conjunto, possuíam 170 milhões de cabeças de gado bovino naquele ano. Porém, a Pesquisa Pecuária Municipal (PPM) de 2017 contabilizou 211 milhões de cabeças de gado vacum, com base em informações obtidas junto aos frigoríficos e abatedouros, ao sistema nacional de controle de zoonose, às Secretarias Estaduais e Municipais de Agricultura, ao Sistema Emater, etc. Em quem confiar? Na PPM, claro. É amplamente sabido que os declarantes tendem a diminuir seu patrimônio pelo temor de fiscalização e confronto das informações dadas ao IBGE e à Receita Federal. Só que daí não se extrai que o Censo Agropecuário não tenha serventia alguma. Seu objetivo não é contar as cabeças de gado. Seu objetivo é avaliar a estrutura fundiária, as práticas agrícolas utilizadas nas diversas culturas, o padrão de assistência técnica, o tipo de defensivo agrícola utilizado, o avanço ou o recuo de práticas agroecológicas e, secundariamente, avaliar a confiabilidade das declarações dos recenseados pelo registro da diferença entre o rebanho real (que a PPM busca resgatar) e o declarado pelos gestores agrícolas.

Algo similar se dá com os Censos Demográfico. Sua função primordial não é a de “contar o número de habitantes” no país, nos Estados e nos municípios. O Censo Demográfico serve para conhecer o país. Em especial, para sabermos a estrutura de trabalho, da apropriação e da distribuição da renda e do patrimônio (imóveis, bens de consumo, anos de estudo, etc.). Este panorama é apropriado e sistematizado para cada município e Estado do país e é estratificado para a população pelos mais diversos critérios, tais como gênero, etnia (cor), religião, faixa etária, naturalidade (onde nasceu), dentre inúmeras outras variáveis.

Mas o Censo também tem por função contar quantos somos. Pois as estimativas da população dependem do Censo Demográfico; elas também são calculadas com base nos dados do Censo. Ele não é a única fonte. Mas é uma fonte importante. Como?

Em primeiro lugar, é preciso entender que há dois Censos, e não um só. Na grande maioria das residências visitadas aplica-se apenas o questionário simplificado, com poucas perguntas, do tipo: Quantas pessoas habitam o domicílio? Qual é o maior rendimento da família? Mas, em cada município, é definida uma amostra representativa para a qual é aplicado o questionário completo. É através dele que somos informados se os domiciliados são nativos do território ou migraram para o mesmo e quando o fizeram; o número de pessoas ocupadas na família; o rendimento de cada um dos ocupados; o rendimento familiar total e médio; etc. Tal como no Censo Agropecuário, é de se esperar que essas declarações não sejam 100% fidedignas. Especialmente as pessoas de estrato social superior tendem a subestimar sua renda e patrimônio. Mas, para a felicidade dos estatísticos e cientistas sociais, a tendência a ocultar informações apresenta uma distribuição normal com variância relativamente pequena. E quando os erros são uniformes, os resultados alcançados são passíveis de interpretação e, eventualmente, ajustes para correção dos vieses.

São exatamente estas informações que alimentam o que muitos vem chamando de “ajustes” ao Censo. O termo não é preciso, na medida em que dá a impressão de que “houve erro e, agora, se faz uma gambiarra”. Não se trata disso. Pelo contrário: trata-se de usar as informações do Censo e de fontes secundárias para fazer a crítica lógica e teórica de dados brutos originais que sempre contêm vieses. Um exemplo:  é de se esperar que a percentagem de domicílios classificados como vagos (sem morador) varie muito de um território para outro. Sem dúvida. Municípios com saldo migratório líquido negativos devem ter mais residências ociosas do que aqueles que estão recebendo população de fora. Mas se esta percentagem é muito elevada em municípios que estão recebendo um número elevado de imigrantes é provável que a subestimação (normal) tenha sido maior do que a média. Esta contradição acende um alerta. Levando à busca de informações secundárias, tais como: variação do número de registros de nascimentos e óbitos, de matrículas escolares, de empregados e desempregados formais, de MEIs (microempreendedores individuais), de consumo de energia elétrica, etc. Até que se chega a resultados mais robustos, em que o conjunto das informações obtidas – através do Censo e do seu balizamento com outras fontes – apresentam a máxima consistência possível.

O que o “Ajuste” do Censo revela sobre a Economia Gaúcha?

Revela o que já sabíamos: que ela vai mal, obrigado. De acordo com os dados preliminares para a população de 2022 (divulgados no ano de 2023), o RS teria apresentado uma das menores taxas de crescimento demográfico dentre as 27 Unidades da Federação. Apenas Alagoas, Rio de Janeiro, Bahia e Rondônia teriam apresentado uma taxa de crescimento inferior à nossa. A estimativa da população de 2024, contudo, alterou essa hierarquia levando à queda do desemprenho relativo do RS. De acordo com as novas informações, Rondônia, Rio de Janeiro e Bahia apresentaram um desemprenho superior ao do RS. De sorte que caímos, da 23ª. posição para a 26ª. posição. Se tomamos os dados já divulgados da estimativa populacional de 2024 por referência, a mudança leva a uma participação ainda menor da população do nosso Estado na população do país. Por oposição, a participação de SC foi ampliada e a do Paraná pouco se alterou.

Evolução da Participação das UFs na População Brasileira entre 1970 e 2024

FDB: Sidra-IBGE

Não é raro nos depararmos com analistas que buscam “naturalizar” esta perda de participação do RS na população nacional, afirmando que ela se manifesta desde meados do século passado e que faria parte de nossas “tradições europeias de planejamento familiar”. Bull shit. Não há qualquer diferença substantiva entre os padrões culturais dos imigrantes europeus que vieram para o RS, para SC e para boa parte do Paraná (que, aliás, teve toda a sua porção sudoeste colonizada por gaúchos). E, não obstante, a dinâmica demográfica dos nossos dois vizinhos é muito distinta da nossa.

Aliás, o caso do Paraná é tão impressionante (ainda que os números não deixem este fenômeno tão evidente) quanto o de SC. Entre 1970 e 1991 o Paraná foi o Estado federado com o pior desempenho demográfico do Brasil. Entre 1991 e 2010, seu desempenho ainda será relativamente baixo, mas já será superior ao desempenho do RS. Por fim, entre 2010 e 2022 seu desempenho o colocará entre os “top ten”. O que mudou? A taxa de fecundidade? A taxa de mortalidade? O crescimento vegetativo? Não. O que mudou foi a atratividade para migrantes de outras partes do país. Após a crise da economia cafeeira, em meados dos anos 70, o Paraná viveu um longo período com saldos migratórios negativos. Este movimento era impulsionado pela substituição do café (cultura permanente intensiva em mão de obra) pela soja (cultura temporária intensiva em maquinário). O reequilíbrio do saldo migratório do Paraná a partir dos anos 90 é indissociável do ingresso resoluto e acelerado do Estado na produção de proteína animal (frango, suíno, leite e derivados, etc.). Estas culturas agropecuárias são intensivas em mão de obra no campo e na cidade, pois o produto rural não pode ser exportado sem ser processado, e seu processamento também é intensivo em mão de obra. Como o seu transporte, que se realiza o ano todo (e não apenas “na safra”) e exige caminhões refrigerados, cuja produção e manutenção também é exigente em mão de obra.

Mas enquanto Paraná e Santa Catarina especializam-se em áreas de alta empregabilidade, com elevada agregação de valor e mercado internacional crescente, o RS navega em outras águas e busca destinos “mais elevados”. Tantos os gestores públicos (das mais diversas inclinações políticas) quanto suas assessorias econômicas têm uma outra preocupação: a produtividade. Por vezes, temos a impressão de que a imagem de futuro que povoa os sonhos desses visionários é uma economia totalmente automatizada e tecnificada, que gera o mínimo de emprego. Se possível, nenhum. Assim, a produtividade do trabalho iria (com Buzz) “ao infinito, e além”. E nem ouse perguntar se uma tal economia não se depararia com problemas de demanda efetiva, com carência de mercado e clientes. Quem o fizer, vai se deparar com um sorriso irônico e piedoso de seu interlocutor. Os economistas gaúchos já superaram o keynesianismo há muito tempo. Nosso desempenho teórico é tão extraordinário quanto nosso desempenho econômico e demográfico: estamos explodindo de tanto retroceder. E já alcançamos o ricardianismo.

Desse jeito, só cabe fazer um pedido: por favor, o último que abandonar o navio, apague as luzes. Isso eleva a produtividade. Mas deixe as centrais elétricas funcionando, talquei. Pois as máquinas não funcionam sem energia. Beijim, beijim, tchau, tchau.

*Carlos Águedo Paiva é economista, Doutor em Economia, Diretor Presidente da Paradoxo Consultoria Econômica.

Ilustração da capa: www.vejasp.abril.com.br

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Toque novamente para sair.