Curtas
“O STF paga com a própria pele a conivência com os crimes da ditadura”, afirma procurador
“O STF paga com a própria pele a conivência com os crimes da ditadura”, afirma procurador
Falta de responsabilização fez com que militares se sentissem empoderados para atentar novamente contra o Estado Democrático de Direito
O programa TVGGN Justiça da última sexta-feira (16) contou com a participação de Marlon Weichert, procurador Regional da República em São Paulo, e Mamede Said, professor da Universidade de Brasília (UnB), para discutir o papel da Justiça Militar diante dos recentes escândalos sobre a suposta participação de militares em um conluio golpista para manter Jair Bolsonaro (PL) no poder após derrota nas eleições de 2022, assim como da falta de responsabilização dos envolvidos.
“Na minha visão, o desenho da Justiça Militar hoje é anacrônico para o que se esperaria de um Estado Democrático de Direito”, adianta Weichert.
O procurador comenta que, em tempos de paz, a Justiça Militar deveria se encarregar de julgar a função disciplinar dos militares, tendo em vista os crimes cometidos por militares contra as instituições militares.
“Uma figura abrangente, que inclusive tem se ampliado nos últimos anos em governos democráticos no Brasil, permite ou atribui à Justiça Militar competências para julgar crimes cometidos de militares contra civis ou de civis contra militares. Isso é absolutamente impróprio por duas razões. Primeiro por desvio de finalidade. Não é papel da Justiça Militar garantir uma justiça diferente para militares que são autores ou vítimas de crimes”, continua o convidado.
Funções
Outra questão que causa confusão é o entendimento de que a Justiça Militar faz parte do Poder Judiciário. “Há um déficit que é exigido, inclusive em jurisprudência da Corte Interamericana dos Direitos Humanos e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que exige que o órgão seja imparcial e neutro para compor o sistema de justiça. Isso não acontece com a Justiça Militar brasileira, composta majoritariamente por militares da ativa”, explica Marlon Weichert.
Na análise de Mamede Said, a presença dos militares na política foi muito nociva, porém sob a gestão de Lula “estamos colocando as coisas nos seus devidos lugares”. “O sinal disso é que em 31 de março do ano passado não houve ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 que derrubou João Goulart. Isso é um sinal de que as Forças Armada podem voltar a um caminho de profissionalização e parar de se imiscuir na cena político-institucional como vimos nos quatro anos do governo passado.”
Porém, a sociedade brasileira ainda não fez um acerto de contas com o nosso passado autoritário. “Na transição do regime ditatorial para a democracia, nós não tivemos as medidas que os países vizinhos adotaram. Os militares sempre foram muito refratários em reconhecer os desmandos praticados, se insurgiram contra os relatórios da Comissão da Verdade, o SNI [Sistema Nacional de Informações] continuou funcionando até meados do governo Collor”, continua o professor da UnB.
Ameaça
Weichert ressalta ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) paga com a própria pele a conivência com os crimes da ditadura, mas agora tem a oportunidade de reconstruir esses capítulos. “O STF colocou o Brasil em uma situação muito desconfortável na comunidade internacional porque somos atualmente o único país da América Latina que não reajustou a sua compreensão de que os crimes cometidos na ditadura militar são crimes que estão fora de qualquer alcance de uma Lei de Anistia ou de institutos tradicionais da prescrição penal.”
Para o procurador, o País paga pela decisão do STF de não rever a conduta dos militares de acordo com a premissa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois sem a obrigatoriedade de prestar contas sobre os crimes da ditadura e os cometidos em outras épocas, os militares se reempoderaram para investir novamente contra o Estado Democratico de Direito e até contra a Suprema Corte.
Reformas
Porém, apenas a promoção da justiça não será suficiente na avaliação de Weichert. O STF, governo, Congresso e sociedade brasileira terão de promover ainda uma reforma institucional das Forças Armadas.
“Tem de ir muito além da responsabilização de cinco ou seis oficiais. As Forças Armadas são enormes. Não adianta eliminar ou penalizar meia dúzia quando a própria estrutura das Forças Armadas segue sendo fonte desse pensamento de uma espécie de superioridade moral e política em relação ao conjunto da sociedade civil, especialmente em relação às forças políticas civis”, conclui o procurador.
Publicado em GGN
Foto: Divulgação/ MJSP
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