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Opinião

O sonho segue vivo – e necessário, estúpido!

O sonho segue vivo – e necessário, estúpido!

Artigo por RED
21/03/2024 15:14 • Atualizado em 24/03/2024 21:09
O sonho segue vivo – e necessário, estúpido!

De SANDRA BITENCOURT*

O sonho acabou? Ele, o operário-presidente, não é mais o cara? Lula anda falando muita bobagem? De quem é a culpa? A culpa é da Comunicação! É mesmo?

Repetimos o mantra que a esquerda não sabe usar os meios digitais, não sabe se comunicar. Não sabe ou não se insere no perfil para lidar com essas dinâmicas?

Estamos testemunhando a penetração massiva das tecnologias de informação na totalidade das esferas das atividades humanas e nas diversas instituições que articulam a ordem social contemporânea. 

É um processo de transformação material da cultura em que – através da digitalização generalizada de suportes– toda uma série de tecnologias analógicas e procedimentos diversos que até recentemente encontrávamos separadamente foram integrados num único sistema numérico, justapostos ou entrelaçados. Não tem volta, vai evoluir muito e rapidamente.

Mas, a proliferação exponencial das tecnologias digitais não pode ser observada como a mera “invenção e disseminação social de objetos técnicos que precipitam mecanicamente uma série de mudanças na forma como uma sociedade se organiza e se comunica” (Guimerá, Barcelona, 2018). A tecnologia desenvolve-se sempre dentro de uma ordem social específica, nunca fora dela, e é, consequentemente, enganoso atribuir-lhe um estatuto externo e falsamente especializado. 

Pensando assim, devemos ter em conta a estreita ligação que existe entre o surgimento das comunicações digitais e uma ordem social em que boa parte das instituições tradicionais estão enfraquecidos. Num contexto em que as relações sociais são atomizadas, o trabalho torna-se temporário e a mobilidade das pessoas generaliza-se, um dispositivo sociotécnico omnipresente, bidirecional e personalizado parece estar em condições de rearticular e unir um ambiente instável e fragmentado. 

A comunicação digital não só cobre as necessidades de orientação, entretenimento e informação que a população exige, mas também é capaz de proporcionar aos indivíduos uma presença constantemente atualizada no domínio público digital. Como aponta Guimerá, permite a construção discursiva de uma imagem pessoal a partir de diferentes recursos semióticos, verbais e visuais, voltada para o público, fenômeno que surge em grande parte como resposta ao problema das relações sociais e de trabalho incertas, precárias e progressivamente desterritorializadas. 

É muito mais veloz, é muito mais difícil e tremendamente complexo gerir uma imagem pública e institucional nestes tempos, sobretudo quando o outro lado em disputa age de maneira perversa (e lucrativa), sediado na fabricação de mentiras e meticulosamente repetindo fórmulas de pânico moral e simplificações que vêm sendo testadas, com êxito, ao redor do planeta. 

Os recursos digitais não são meras questões instrumentais, são mais uma forma cultural. No caso das plataformas sociais, cultura caracterizada pela autopublicação (a capacidade que dá aos usuários de gerar e partilhar o seu próprio conteúdo), pelo sentido de copresença (a simulação de um ambiente partilhado) e pelo fluxo de -dados (organização da informação na forma de um fluxo centralizado e permanentemente atualizado). 

Reportagem minuciosa da Agência Brasil nos revela que atualmente está em curso uma nova onda de desinformação no país, impulsionada por conteúdos e notícias falsas – fake news – nas áreas de saúde, educação, atreladas aos costumes. Fórmula tão conhecida quanto eficaz.  Olhar para o fenômeno dos índices flutuantes de popularidade e atribuir a queda a um discurso, um episódio ou, como propôs colunista apressado desta província gaúcha, à obsolescência da liderança de Lula, é quase pueril.

Em anos eleitorais, aumenta consideravelmente a produção de desinformação, como  atesta a jornalista e pesquisadora Magali Cunha, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro. Magali, diz na matéria da Agência Brasil: “Os anos de 2018, 2020 e 2022 foram muito intensos com desinformação nos ambientes digitais. Já entre 2019 e 2021, houve deliberadamente uma política de desinformar, promovida pelo governo [do então presidente Jair] Bolsonaro. Mas desde outubro do ano passado, é cada vez mais alta a intensidade e quantidade de notícias falsas”, constata Magali.

Outro craque nesse campo de estudos e ações, João Brant, Secretário de Políticas Digitais da Secom, fez um fio no X que mostra muito bem o tamanho do problema e a corrida para atuar sobre ele. Brant reitera que “o problema da desinformação é grave, não se resolve com soluções miraculosas. É preciso combinar ações de curto e longo prazo, combinar reações imediatas com nova legislação, fazer articulação internacional”. Nesse sentido, Brant mostra o panorama do que o governo vem fazendo, investindo em termos de comunicação estratégica (publicando desmentidos, por exemplo), transparência (com o ComunicaBr que reúne todas as informações estratégicas sobre as políticas do Governo Federal em todos os estados e municípios), articulação com AGU e Secretaria Nacional do Consumidor, debate de nova legislação, regras de investimento publicitário, fortalecimento da Rede Nacional de Comunicação Pública, fomento á comunicação popular e Estratégia Brasileira de Educação Midiática, entre outras ações. É muita coisa.

Posso concordar que talvez falte uma estratégia de Comunicação que integre tudo isso, defina públicos, linguagens e plataformas com maior clareza e propósito. Entendo que há um certo vazio político na definição de prioridade e precisão discursiva. Mas agir com razoabilidade, republicanismo e ética é sempre mais difícil e mais custoso do que semear mentiras nos subterrâneos. O ecossistema de desinformação, como diz a matéria da Agência Brasil,  é retroalimentado por um circuito onde as fake news trafegam e ganham cada vez mais espaço, sem que as pessoas percebam.

Talvez o tempo do Lula tenha passado e ele não seja de fato adestrado em comunicação digital, mas seu discurso humanista permanece como oxigênio nestes tempos asfixiados pelo fascismo atrevido e as guerras hipócritas. 

Não é possível acusar esse democrata, como se flertasse com o autoritarismo, porque supostamente é amigo de ditadores. É um insulto reducionista, grosseiro e falso. Olhemos ao redor, vamos perceber um mundo assediado pela desigualdade, pela violência, pela destruição da natureza e das esperanças.  Confundir posições é outra tática desprezível. Escancarar a crueldade do governo extremista de Israel não significa ser defensor inocente do Hamas. São coisas distintas e quem formula essa acusação sabe bem disso, apenas falseia intenções para ocultar a própria posição inconfessável.

As necessidades sociais novas e prementes podem ser cobertas de diferentes formas e a evolução das diferentes plataformas digitais com suas diversas configurações, reconfigurações e fusões de modelos, por vezes antagónicos, nos dão a dimensão da mudança que padecemos.

Mas algo não muda. O olhar para o ser humano com compaixão, a vontade de cessar a fome, a entrega permanente para quem mais precisa, essa não sai de moda, esse sonho não se apaga. Sim, Lula acredita ser o cara, e neste mundo de estúpidos, ele é mesmo.


*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Foto do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no lançamento do plano Juventude Negra Viva, no Ginásio Regional da cidade satélite de Ceilândia: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil.

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