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Opinião

O silêncio que antecede o terror

O silêncio que antecede o terror

Artigo por RED
31/08/2023 05:30 • Atualizado em 02/09/2023 21:29
O silêncio que antecede o terror

De SANDRA BITENCOURT*

Diario El Sol, 7 de novembro de 1922 : “Um movimento político inclassificável dentro dos escaninhos do século XX”. Foi assim que Ramiro de Maeztu definiu a ideologia que acabava de irromper de surpresa na Itália, uma semana antes, pelas mãos de Mussolini. No seu artigo, intitulado “O fascismo ideal”, o prestigiado escritor espanhol fez uma defesa dissimulada da nova tendência, criticou a liberdade de imprensa e de associação e aprovou o uso da violência como meio de garantir o bem-estar do povo.

Quando Mussolini tomou o poder na Itália, com a Marcha sobre Roma, muitos jornais espanhóis elogiaram o seu feito e essa nova e desconhecida ideologia, talvez sem imaginar que ela traria consigo o período mais negro do século XX e a guerra mais mortífera da história da humanidade. Esta imagem da Biblioteca Nacional da Espanha mostra Mussolini ao centro, de gravata, e as manchetes abonadoras dos principais jornais espanhóis.

Uma pergunta frequente que costumamos fazer é se os jornais da época não dispunham de informação suficiente para serem mais enérgicos na condenação do movimento que se tornaria expressão de terror absoluto. A resposta, infelizmente, é que tinham.

No final de outubro de 1922, a imprensa espanhola relatava em pormenores a marcha dos camisas negras em direção à capital, os assaltos a edifícios públicos, o incêndio das sedes dos sindicatos operários, os espancamentos, os feridos e os mortos que deixaram, a declaração do estado de sítio e o ultimato ao primeiro-ministro Luigi Facta. “Digo-vos com toda a solenidade: ou o governo nos é entregue ou tomá-lo-emos marchando sobre Roma”, avisou Mussolini.
Quase um século depois, com a humanidade inteiramente interligada e com suprimento de informação em tempo real, nos fazemos a mesma pergunta diante do avanço do extremismo fascista ao redor do mundo e da normalização ou silenciamento de imprensa e autoridades.

Em Porto Alegre, cidade conhecida mundo afora pela participação popular, pelos projetos de integração da cidade formal e da cidade esquecida, pelo Fórum Social Mundial e pelas Mercocidades, pela Legalidade, enfim, por sua vocação democrática, a Câmara de Vereadores hoje bordada de negacionistas e fascistas, teve o atrevimento de transformar o ultrajante e golpista 8 de janeiro no dia do Patriota. Uma aberração que é tão patética quanto perigosa, eis que a historia nos ensina que o bizarro e o caótico fermentam muito bem o terror absoluto.

A cobertura dos veículos locais foi correta ao apontar o absurdo. E cresceu em veemência diante da repercussão no resto do país. Editoriais e colunistas se posicionaram, entre envergonhados e indignados diante do desonroso lugar em que a cidade foi posta. A autoria de um vereador Bolsonarista cassado foi repudiada, mas como se esse fosse um personagem que já estivesse fora do contexto, quando de fato há enclaves de fascismo perigosos nessa legislatura, a mesma que recusou o passaporte vacinal ou que apoiou os acampamentos golpistas diante dos quarteis do centro da cidade.

Mas, na minha modestíssima opinião, nada se compara ao silêncio do prefeito. Um silêncio inesquecível e imperdoável. Até aqui, o prefeito vinha sendo tratado como um democrata, embora tenha dado mostras do contrário, com uma conduta negacionista inaceitável, com apoio ao Bolsonarismo contra seu próprio partido, com ações e manobras para dificultar o transporte público e gratuito aos eleitores da periferia e agora com essa conduta silente e covarde, pra não ficar mal com sua base tosca, diante do atrevimento de transformar um dia vergonhoso numa homenagem.

Faria bem se a imprensa localizasse, em toda sua dimensão e efeitos, os posicionamentos e condutas democráticas, anti-democráticas e sim- porque não- ideológicas. A prática, no entanto, é da falsa simetria. “Ouvimos os dois lados”. Ou do equilíbrio usado como escudo para parecer justo em seu ofício: “esquerda e direita nos criticam”.

A realização de determinados rituais de objetividade como neutralidade e fairness (o princípio de ouvir os dois lados) pode contribuir para dar credibilidade, mas não estão necessariamente ligada à adequação de uma cobertura jornalística à realidade, nos propõe os autores René Seidenglanz e Liriam Sponholz no artigo Objetividade e credibilidade midiática: considerações sobre uma suposta relação (Revista Contemporânea- UFBA- 2008).

Objetividade é uma norma central em jornalismo e deve ser entendida como a adequação de uma representação à realidade. Mas é ao mesmo tempo um conceito polissêmico, ou seja, com muitos sentidos “Neste contexto, o conceito se refere à relação entre as realidades social (primária) e midiática (secundária) (Bentele, 2008)e contém uma determinada concepção (epistemológica) de verdade, a de verdade como correspondência. Neste sentido, a frase “a neve é branca“ é verdadeira se a neve for de fato branca (Popper, 1984, 44)”.

Objetividade como adequação à realidade se baseia na ideia de que é possível dizer se as informações contidas em uma declaração condizem com a realidade ou não. As regras de abrangência da objetividade são: fairness, equilíbrio, independência, transparência das fontes, separação de notícias e comentários, precisão, imparcialidade, veracidade, neutralidade e foco em fatos (Wyss, 2002, 152; McQuail, 1992, 184; Westerstahl, 1983).

Mas tempos de exceção exigem para além da posição “não ser tendencioso” e fairness. Pensar o que deve ser alcançado com todas estas regras e qual a relação entre estas e a adequação à realidade que se mostra ameaçadora. Na pesquisa e na literatura são questões que permanecem sem respostas definitivas. Mas o fascismo não está apenas batendo à nossa porta, está tentando arrombá-la e ensopando a casa de gasolina com um fósforo à mão. Sem exagero. Qual o papel do jornalismo nisso? Qual o adjetivo que deveria ser dado ao prefeito em silêncio conivente diante do absurdo?


*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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