Opinião
O silêncio e a voz da bela Leventina
O silêncio e a voz da bela Leventina
De LÉA MARIA AARÃO REIS*
Dois filmes brasileiros – um, em cartaz nos cinemas e no streaming, e o outro em vias de estrear nas telonas –, simbolizam claramente o atual momento de grande preocupação geral, no Brasil e no mundo, com o aquecimento global acelerado e às vezes semelhante a um suicídio programado, e à violência urbana e rural que se traduz em atentados, guerras, genocídio (no caso da Palestina) e proliferação de milícias de justiceiros que pretendem se vingar por conta própria substituindo leis jogadas no lixo e uma segurança pública que não funciona. Neste caso, o filme Propriedade que está para estrear.
O pequeno e sofisticado documentário Diário de uma Onça, exibido em comemoração ao Dia Nacional da Onça Pintada (29 de novembro) traz o recado de que ainda é possível salvar pelo menos partes de florestas, cerrados, das regiões do Pantanal e as espécies em vias de extinção que habitam esses locais mediante, em grande parte, a ações de grupos privados subvencionados por grupos específicos, organizações da sociedade civis, as ONGs que desenvolvem ações solidárias.
O filme, de uma hora, narra a história verídica de três gerações de onças pintadas habitantes da reserva ecológica do Pantanal de Caiman, próximo de Corumbá, Mato Grosso do Sul, e através de uma inventiva perspectiva. O relato em primeira pessoa de Leventina, jovem onça que precisa se proteger de predadores e das ameaças humanas é realizado através da carinhosa voz da atriz Alanis Guillen. Uma narração irretocável.
Outros trunfos do doc são a bela trilha sonora original de Ruben Feffer, com canções de Almir Sater executadas pelo próprio violeiro pantaneiro, e algumas breves, oportunas e bem colocadas intervenções de biólogos do grupo Onçafari que conseguiu, pela primeira vez na história natural, reintroduzir com sucesso o felino (ou ‘pantera’ como é classificada a espécie das belas onças pintadas) no seu habitat natural, com toda delicadeza e respeito de que é capaz a nossa espécie humana quando quer.
Neta de Fera, a primeira onça resgatada e reintroduzida com sucesso em seu ambiente natural, e filha de Ferinha, Leventina vive em um território ameaçado pelo homem, diante daquilo que rotulamos como ‘progresso’ e das alterações climáticas cada vez mais evidentes. A trajetória de Leventina se desenvolve em seus momentos de fúria, de dificuldade, de alegria e de prazer.
Fera foi resgatada quando era apenas filhote, depois da mãe morta em um acidente causado pelo homem. Passou pelo processo de reintrodução à natureza nos locais restritos do Onçafari e, quando estava pronta, foi solta. Fera conseguiu aprender a caçar e sobreviver tornando o experimento de reintrodução à natureza um sucesso. Não demorou e teve Ferinha, que mais tarde deu cria, a Leventina, que é quem guia o espectador no filme. Ainda filhote, Leventina perde o irmão e é abandonada por Ferinha ainda muito pequena.
Diário de uma Onça foi filmado em material bruto durante mais de 200 horas e ao longo de três anos. É dirigido por Joe Stevens, reconhecido por seus documentários produzidos na natureza, como Earth at Night, que se encontra disponível na AppleTV+, por Mario Haberfeld, fundador da Onçafari e por Fábio Nascimento, cineasta e fotógrafo documental. “Houve momentos em que realmente não sabíamos se Leventina sobreviveria, mas ela nos mostrou repetidamente como o espírito das onças pode ser resiliente”, diz Stevens.
Quem resume a complexidade e delicadeza do trabalho é a roteirista do filme, Bea Monteiro: “Para escrever sobre Leventina precisei saber detalhes da sua trajetória. Dar voz a ela foi um grande desafio porque eu não queria correr o risco de humanizá-la demais e romper com o seu ‘lado fera’. Não foram nas palavras que encontrei sua voz, mas nos sentidos, o gesto, o olhar, sua atenção e, acima de tudo no seu silêncio. Leventina me ensinou sobre as leis da vida diante das dificuldades de uma natureza implacável e, mais do que isso, me ensinou a desbravar e a resistir com coragem frente aos desafios diários de uma existência”.
Agora, sozinha na imensidão do Pantanal, Leventina terá que fazer o mesmo que as suas ancestrais e lutar por sua própria vida a cada dia. Assim como as suas colegas que vivem nas florestas amazônicas, na Mata Atlântica e no Cerrado, esses belos, silenciosos e resistentes animais de hábitos solitários.
**O filme Propriedade está para entrar nos cinemas.
*Jornalista carioca. Foi editora e redatora em programas da TV Globo e assessora de Comunicação da mesma emissora e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Foi também colaboradora de Carta Maior e atualmente escreve para o Fórum 21 sobre Cinema, Livros, faz eventuais entrevistas. É autora de vários livros, entre eles Novos velhos: Viver e envelhecer bem (2011), Manual Prático de Assessoria de Imprensa (Coautora Claudia Carvalho, 2008), Maturidade – Manual De Sobrevivência Da Mulher De Meia-Idade (2001), entre outros.
Imagens: divulgações.
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