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O RESGATE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO

O RESGATE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO

Resenha por RED
01/10/2024 09:37
O RESGATE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO

Por  LOURENÇO CAZARRÉ*

O resgate de João Simões Lopes Neto

Filho e pai de juristas, o advogado Carlos Francisco Sica Diniz deu publicação, recentemente, ao maior e mais demorado processo de sua longa e bem-sucedida carreira: a folha-corrida de alguém chamado João Simões Lopes Neto. Os autos somam 439 páginas e serão lidos – tenho certeza – com gosto e paixão por todos os que amam o criador dos Contos gauchescos, hoje multidão.

Essa abertura de resenha, apelando para a advocacia, arte que não domino, me ocorre depois de ler no posfácio do livro João Simões Lopes Neto, uma biografia -, de autoria de Sica Diniz e agora já em segunda edição – as seguintes afirmações: “Diniz, além de rastrear as quase já desaparecidas pegadas do escritor, bebeu… em novas, fecundas e privilegiadas fontes. Perseverou na procura pelo que restara dos seus papéis. Agiu como atuante e desprendido advogado que não poupa esforços para perseguir os meios de defesa do seu constituinte”.

Primeira leitura

Li duas vezes a primeira edição dessa biografia, que veio à cena faz vinte anos. A primeira leitura eu a atravessei logo após obter o exemplar, autografado para mim pelo autor, em agosto de 2003. A segunda leitura, muito mais aprofundada, ocorreu entre dezembro de 2019 e julho de 2020, quando rabisquei, em parceria com meu filho Érico, um roteiro cinematográfico sobre a movimentadíssima vida do neto do Visconde da Graça.

Em plena pandemia, reli com muito cuidado aquela primeira edição, que tinha, digamos, apenas 312 páginas. Por que apenas? Porque nós, ledores de JSLN, queríamos muito mais, no que fomos atendidos, agora, pelo biógrafo.

Considerando que os tipos da primeira edição eram de corpo maior, pode-se ter uma ideia de quanto material foi ajuntado. O livro cresceu em mais de 30 por cento, creio eu.

 

Roteiro

Preciso fazer aqui uma breve pausa para os meus comerciais.

O roteiro para um filme sobre Simões Lopes nasceu de um projeto do Érico, cineasta formado na Universidade de Brasília.

Sabedor de que o nosso conterrâneo era um tocador de mil instrumentos, ele me sugeriu que escrevêssemos algo sobre o homem e não sobre o ficcionista.

Por quê? Ora porque há dezenas de teses competentes sobre o trabalho literário de Simões, enquanto eu, vagal, preguiçoso, que não apresentei tese, não tenho sequer um mestrado em literatura.

Assim, Érico e eu centramos o nosso trabalho nas inúmeras atividades – cívicas, culturais, educativas, teatrais, políticas, comerciais, jornalísticas e industriais -, muitas delas fracassadas, de um cidadão apontado como azarado por muitos dos que o conheceram.

Para fazer esse trabalho, lemos o livro de Diniz com vagar e atenção dobrada, assinalando com marca-texto as muitas passagens que mais nos despertavam o interesse. Consultamos ainda os livros de Carlos Reverbel e de Ivette Massot sobre aquele homem que gostava de ser chamado de capitão da guarda nacional, embora sua performance marcial, na sanguinária Revolução de 1893, tenha sido discretíssima, para não dizer que foi nenhuma.

Artinha de leitura e reportagens

Voltemos ao livro de Sica Diniz. Acredito que os dois capítulos que mais despertarão o interessante dos fruidores dessa nova edição sejam os que tratam do Artinha de Leitura, livro descoberto apenas em 2008, e das reportagens de Simões – quando ele chega ao jornalismo, já maduro – sobre os subterrâneos da Princesa do Sul.

Não vou me profundar sobre as peripécias da surpreendente descoberta do Artinha de Leitura, que dariam, apenas elas, matéria-prima para um belo curta-metragem. Por favor, leiam!

Simões, que toda sua vida fora um colaborador não-remunerado de jornais, chega em 1913 ao jornalismo profissional. O que era passatempo torna-se meio de vida quando ele, depois de ter vendido sua residência, mora com parentes.

Querendo fazer o mesmo que tantos grandes jornalistas faziam em Paris e no Rio de Janeiro (aqui devemos apontar João do Rio), Simões sai às ruas de Pelotas para tratar de assuntos que nunca dantes chegaram às folhas. Vai a um cortiço, reproduz uma conversa de malandros e chega às bandas do forno do cisco (que quando miúdo eu chamava de forno do lixo). São reportagens surpreendentes.

Aliás, é também notável o exercício que Simões faz para registrar a linguagem coloquial, como falada na época pela população mais pobre da Atenas rio-grandense.

Linha sucessória

Quero registrar aqui, de forma ligeira, um dos trechos que mais me surpreendeu nesta biografia. Vem ele já na introdução, quando Diniz traça um breve quadro da linha sucessória da literatura gauchesca, nele enquadrando o nosso patrício. Hidalgo, Ascasubi, Estanislao del Campo e José Hernandez, todos eles lidos e recenseados pelo grande Jorge Luís Borges.

Fiquemos com o exemplo de Hernandez que, no Martin Fierro, escreve: “Tuve en mi pago en un tempo, hijos, hacienda y mujer. Pero empecé a padecer, me echaron a la frontera, y que iba hallar al volver? Tan solo hallé la tapera”. Simões: “Eu tive campos, vendi-os; frequentei uma academia, não me formei; mas, sem terra e sem diploma, continuo a ser… Capitão da Guarda Nacional”.

Leituras mais finas

Diniz publica breves resumos de todos os contos e lendas de JSLN, apontando, para cada um deles, aqueles críticos que apresentaram as leituras mais finas, mais reveladoras, mais percucientes.

Infância

O livro de Diniz começa na ensolarada infância vivida no imenso sobrado da Estância da Graça, de onde Joãozinho só saiu aos 11 anos, para estudar na cidade. Lá, ele monta seu petiço Vermelhinho, brinca com o cordeirinho Romeu e bate os campos à caça de ninhos passarinhos com Simeão, seu irmão de leite, que o acompanhará até o fim da vida.

Pão cotidiano

O mais tocante trecho do livro, no qual o escritor Carlos Francisco mais burila seu texto, está, sem dúvida, nas últimas páginas, nos tenebrosos e patéticos meses finais, quando um empobrecido, adoentado e precocemente envelhecido Simões (50 anos) arranca do ramerrão jornalístico o pão cotidiano para ele, sua esposa, dona Velha, e para a filha Firmina.

Maturidade

Autor de muitas e divertidas peças de teatro quando jovem, o maior contista do Continente de São Pedro só produziu suas grandes obras depois dos 40 anos. Começa com o “Negrinho do Pastoreio” em 1908. Nos anos seguintes, criará Blau Nunes, o contador de causos do Pampa que servirá depois de molde para Guimarães Rosa fundir o seu Riobaldo.

Ecologista antes do tempo

Ao longo da vida, como já dissemos, o irrequieto Simões enfiou-se em todos os tipos negócios e dedicou-se por incontáveis anos à Biblioteca Pública, à União Gaúcha e à Associação Comercial.

Foi precursor ecológico ao criar o Dia da Árvore, defendeu os animais de maus tratos e foi até mesmo um incentivador do ciclismo. Criou uma coleção de cartões postais sobre temas patrióticos e imaginou e editou a valiosíssima Revista do Centenário de Pelotas.

Suas qualidades, segundo seus amigos, eram: generosidade, discrição e, principalmente, modéstia.

Enfim, o sucesso

Quando menino, por ser muito inteligente, todos previram um belo futuro para ele. Mas nada de grandioso que imaginaram para ele se realizou. Ou falando melhor: só se tornou realidade décadas depois de sua morte. Talvez possamos indicar 1949, quando sai a edição crítica preparada por Aurélio Buarque de Holanda para a editora Globo e sua carreira literária finalmente deslancha.

Por fim, João Simões Lopes Neto tem a felicidade de ser biografado por aquele que talvez seja o mais apaixonado dos seus leitores. Aliás, o mais apaixonado dentre os inumeráveis integrantes das vastas legiões que hoje cultuam o criador de “Negro Bonifácio”, “No Manantial” e “Salamanca do Jarau”.

Essas palavras são de Fausto José Leitão Domingues, outro rastreador de pistas deixadas pelo “rapsodo bárbaro”, que era como Manoelito de Ornelas se referia ao maior escritor pelotense. Eu não saberia definir melhor que Domingues – que desvendou a vida escolar do jovem João Simões – a ciclópica missão de Sica Diniz.

Para os desatentos devemos lembrar que João Simões Lopes Neto foi um dos maiores escritores gaúchos e, no cenário nacional, o mais destacado dos autores de um ciclo que alguns historiadores da Literatura chamam de Regionalismo e outros de Pré-modernismo.

*Jornalista e escritor

Publicado originalmente em 13Horas.

Foto: Divulgação

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