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Opinião

O presidente que não consola

O presidente que não consola

Artigo por RED
22/10/2022 12:11 • Atualizado em 24/10/2022 00:46
O presidente que não consola

De JORGE BARCELLOS*

Há um argumento ainda pouco explorado na campanha eleitoral e que merece atenção. É a lição que se pode tirar da história de um país que, como muitos, ficou imensamente doente. A Covid 19 não apenas vitimou no Brasil mais de 600 mil pessoas, mas trouxe uma imensa carga de tristeza para os brasileiros – a ameaça da morte que exigia uma necessidade enorme de consolação. A pandemia mostrou que o brasileiro era um cidadão frágil e as cenas de agradecimento da população aos profissionais da saúde foram apenas uma parte da necessidade de consolação atendida plenamente pelas pessoas entre si. A nação não se curou plenamente da pandemia, mas os brasileiros descobriram novas formas de se ajudar consolando-se uns aos outros, agindo com delicadeza e fraternidade, cultivando sua espiritualidade. Se não se conseguia curar a doença, ao menos se conseguia consolar. “Consolação é tudo que esperamos, ou que oferecemos, quando a realidade não pode ser reparada. É o que nos levanta e nos afasta por um instante de nossos desesperados e de nossas resignações, e que nos devolve suavemente o gosto pela vida” diz Christophe André em seu Deixe a vida te consolar (Editora Vestígio, 2022).

Jair Bolsonaro é a negação da consolação. Ele não consola porque age na contramão dos atos sinceros e solidários. Consolar é tentar aliviar um sofrimento. Bolsonaro não consola porque não tenta, não lhe importa o sofrimento alheio porque tem certeza de que o resultado é nulo, ao contrário daquele que tenta mas que não tem certeza do resultado; Bolsonaro não consola porque não se dispõe a aliviar a dor pois crê que não pode apagar a dor de quem sofre. Faz isso não por um sentimento de perda daquele que consola, mas pelo sentimento de indiferença daquele que não se dispõe a consolar. Bolsonaro não consola porque não se importa com o sofrimento ou com as adversidades que geram impacto emocional nas pessoas. Ele recusa não apenas o afeto presidencial que poderia consolar a nação, como não faz nada que surpreenda e valorize a vida daquele que sofre. Ele não trilha do caminho do consolador, o caminho que diminui a dor do sofrimento. Ele perde a função de um grande líder de um pais, a de auxiliar na cicatrização da dor de seus cidadãos.

É que durante toda a pandemia Bolsonaro se recusa a oferecer gestos ou palavras de consolação para os cidadãos que viveram em sofrimento. Ele não alivia a dor alheia, ao contrário, age com indiferença. Ele não consola como também não reconforta. Reconfortar o cidadão é aliviar a dor no momento presente, exatamente como critica Lula no debate da Rede Bandeirantes, por não ter-se permitido ir visitar ao menos uma vítima em um hospital. Se o tivesse feito, ele teria tornado um pouco mais fortes as vítimas da doença, teria as incentivado a voltar ao convívio social, teria feito o que faz um líder solidário, o que ele não é. Se tivesse consolado sua população, ela estaria mais forte para superar as feridas representadas pela morte de milhares de brasileiros. Bolsonaro não está nem aí para as vítimas porque não lhe importa aliviar sua sensação de sofrimento.

Não se trata de querer que o presidente alterasse, pela força de seu poder, as situações individuais, como vimos que poderia ser feito ao menos no caso da asfixia de pacientes na cidade de Manaus. Bolsonaro deliberadamente não deseja aliviar o sofrimento alheio e não porque o auxílio-emergencial que oferece a população não seja necessário: ele é um auxílio externo, e o que as pessoas também precisavam era um auxílio interno, que atacasse seus medos, sua dor.

Ao longo da pandemia, podia-se ver que Bolsonaro se recusava a atuar nas quatro dimensões da consolação. A primeira, a dimensão do afeto, porque ele não dirige sentimento algum para as pessoas em sofrimento; a segunda, a dimensão da atenção, pois ele não faz gesto algum para desviar a atenção daquele que sente dor, o que levaria a suspensão do sofrimento que permitiria recuperar o fôlego; a terceira, a dimensão da ação, já que ele não faz nenhum convite a ação comum e compartilhada que permitiria aqueles em sofrimento a voltar para a vida. E finalmente, a última dimensão, a da aceitação, porque ele foi incapaz de compartilhar uma adversidade com outros, de reconhecer que aconteceu uma tragédia em nosso país. Ao contrário, defendeu a manutenção da normalidade, do trabalho.

A incapacidade de Bolsonaro de consolar se vê quando não compartilha publicamente as dores causadas pela pandemia. Nada de gestos de afeto, de mãos estendidas em direção a um doente, nada. As palavras, é claro, aliviam de forma imperfeita, mas significam para aquele que sofre, que a dor não é vivida solitariamente; para Bolsonaro é a indiferença com seu semelhante que predomina, individualismo obsessivo capitalista que esvazia a solidariedade e por isso torna o presidente incapaz de compartilhar a dor. Em abril deste ano o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, visitou as vítimas das devastadoras enchentes na costa leste do país na província de KwaZulu-Natal, incluindo uma família com quatro filhos, depois que enchentes e deslizamentos de terra devastaram suas casas.. Ele disse “Você não está sozinho… Faremos tudo ao nosso alcance para ver como podemos ajudar”, disse o presidente sul-africano. Mesmo que seus corações estejam doloridos, estamos aqui para você.” Essa é a atitude que a sociedade brasileira esperava de seu presidente, que compartilhasse a dor de seu povo, nada mais distante para o universo de Jair Bolsonaro. O consolo é uma atitude importante para as vítimas atingidas por desastres, como nas narrativas de sobreviventes que se unem na luta para salvar os demais. Quantas vezes vimos estas cenas em regiões de tragédia no país?

Faz parte da definição de ser humano o desejo de consolar aquele que sofre. Quando na tragédia consolamos uns aos outros, consolamos porque tememos por nós mesmos, o que significa que o desespero é capaz de unir os seres humanos. A união é uma das bases do conceito de nação. Se um governante não consegue fomentar a união por seus atos ou omissões, ele não é um bom governante. Isso acontece porque, por não envolver um auxílio material, todos podemos consolar, é a nossa imaterialidade que é determinante. É ela, uma intenção, que nos faz parte de uma humanidade. Jair Bolsonaro é incapaz de dar algo imaterial porque “na ordem material, só podemos dar o que temos; na ordem espiritual, podemos dar o que não temos”, como diz o filósofo francês Gustave Thibon (1903-2001), indicado quatro vezes ao prêmio Nobel de literatura. Essa afirmação confirma o que desconfiávamos há muito tempo: que, em termos de espiritualidade, Jair Bolsonaro é o que se chama de “zero-à-esquerda”, um nada. Um governante sem espiritualidade não pode ser um bom governante, sem essa forma de relacionamento profunda com os mistérios da vida e da morte, do bem e do mal, simplesmente porque Bolsonaro não tem espiritualidade para confortar uma única pessoa. Não é notável que o mesmo presidente que reivindica para si o apoio político de religiosos não seja capaz, por si mesmo, de uma atitude espiritual básica?

Quem consola sugere e murmura, ao contrário de Bolsonaro, que eleva a voz contra o outro, contra a mulher, contra o negro, por exemplo. Não é surpreendente que, apenas agora, na campanha eleitoral, surgem imagens “ternas” de Jair Bolsonaro junto a mulheres e crianças, algo que não se viu em três anos de governo? Diante das câmeras no período eleitoral sucede-se imagens de um homen capaz de escutar, que quer sugerir uma suposta ternura jamais vista, que querem aparentar serem ditas com sinceridade e compaixão. Onde andava esse Jair Bolsonaro humilde, consolador, capaz de estar ao lado de quem sofre durante a pandemia? Minha resposta: ele nunca existiu porque é uma invenção do marketing político, a invenção necessária para combater a denúncia de perfil anticonsolador alimentado pela esquerda para algo palatável ao grande público. É, portanto, uma ficção. Isso acontece porque a falta amor e fraternidade numa figura alimentada pelo cultivo à violência e a defesa do uso de armas é impensável para os públicos que vista conquistar, especialmente o católico.

Falta a Bolsonaro uma qualidade exigida pela religiosidade, pela fé: ele não acredita no poder das palavras de fazer o bem. Ele não trabalha com esperança, mas com ódio. Para o presidente, isso acontece porque não há esperança de um futuro a consolar, no capitalismo, sentir dor é uma consequência da vida e o alivio vai na contramão. A concepção do capital é a de descarte pura e simples da mão de obra que adoece, que sente dor. O dinheiro não precisa dos desolados, ao contrário, o rejeita e não tem intenção de consolar, o que é um gasto de energia considerada improdutiva, quanto o capital trabalha apenas com gasto de energia produtiva. Mas mesmo as vítimas da Covid no caminho da morte necessitam ouvir que tudo se resolverá, que a vida pode recomeçar. Essa indiferença produto de certo ceticismo realista nega que existem outras formas de morrer, as quais a consolação oferece uma saída bela e digna.

Ao recusar o consolo, Bolsonaro mata cada um dos momentos da vida das palavras: ele mata por não dizer o que é preciso num momento de necessidade; ele mata porque não oferece nenhuma palavra que a vítima lembre tempos depois e reflita sobre ela; ele mata porque não oferece nenhum signo que possa ter sentido reparador e finalmente, ele mata porque tira a possibilidade da criação da lembrança de que a vida vale a pena viver.

Ele faz isso porque sua subjetividade é capitalística, no sentido de que falam Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu “O Anti-Édipo”: por produzir pequenas sensações de gratificação sem retorno, é considerada anti-econômica. Para ser eficaz, é preciso consolar a vitima ao longo do tempo, o que a torna um investimento oneroso “a filosofia da consolação é sempre necessária como é sempre insuficiente”, diz o filósofo André Comte-Sponville. E finaliza Christopher André “sem consolação, a dor nos faz naufragar; com consolação, a dor continua, mas não nos faz naufragar, sentimos que talvez possamos aguentar”.

Esse é o argumento que precisa ser usado na campanha eleitoral junto a segmentos espiritualistas: o de que Jair Bolsonaro é um mal presidente porque não acompanha a alma de sua nação. Se ele, com todo o poder que tem, foi incapaz de consolar as vítimas da pandemia, é porque não é um presidente bom, pois um presidente deve ser capaz de gestos de bondade em momentos importantes da vida de seus cidadãos.


*Doutor em Educação pela UFRGS, autor do livro O êxtase neoliberal (Clube dos Autores, 2021).

Imagem em Pixabay.

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