Qual é a paisagem que vem a sua mente quando pensa em Rio Grande do Sul? Para mim, que nasci no meio do Estado, logo me lembro das coxilhas, daquele cheirinho de carqueja invadindo minhas narinas. Daquelas paisagens com diferentes tonalidades de verde e um horizonte a perder de vista.
Meu recanto sagrado de carregar as baterias por muito tempo foi no encontro de duas coxilhas, numa matinha ciliar onde uma pequena queda d’água proporciona uma espécie de altar de contemplação à natureza. A água nasce a poucos metros de onde ela cai. Remeto minha memória para esse cenário quando preciso dar uma equilibrada. Todo mundo que tem experiências em lugares como esse pode não saber conscientemente do seu poder simbólico no nosso imaginário.
Essa identificação com o campo é tão forte, que talvez seja isso que mova tantos gaúchos e seus descendentes a transformarem ambientes naturais do Cerrado e da Amazônia em campo para criar gado ou plantar. É uma suspeita. Afinal, boa parte dos desmatadores tem origem sulista. Também pode ser que seja essa aura pampeana que faça tanta gente achar que a cultura do ginete, do tiro de laço, das cavalgadas, entre outras atividades, seja uma tradição que mereça ser cultivada em outros pagos. Há muitas possibilidades que merecem ser pesquisadas para entendermos a nossa relação com esse ambiente que se traduz de diversas formas na nossa cultura.
No dia 17 de dezembro, comemora-se o Dia Nacional do Pampa. Pois esse dia foi escolhido por ser a data de nascimento de José Lutzenberger. O Lutz também comemorava essa data com festa de aniversário no Rincão Gaia. Lembro que fui algumas vezes com o inesquecível Augusto Carneiro à celebração. Aquele espaço era um desbunde no tempo em que o Lutz era vivo. Tinha uma coleção de espécies de cactos, suculentas e plantas carnívoras de deixar muito apreciador de jardim botânico de queixo caído. Ainda hoje é um lugar maravilhoso para se conhecer.
A área do Rincão fica em Rio Pardo, a 120km da Capital. Lá dá para sentir o vento, enxergar o horizonte e as coxilhas desse estimado bioma, que nós, gaúchos, temos o privilégio de desfrutar com exclusividade no Brasil. Só que, apesar de ser o cenário de tantas histórias, de costumes e da cultura perpetuada principalmente em Centros de Tradição Gaúcha (CTGs), o Pampa vem sendo muito mal tratado.
Nosso querido e tão aclamado bioma, cantado em versos em tantas músicas e poemas, tem deixado cientistas preocupados. Como ele é formado por ecossistemas distintos, em um Estado densamente ocupado por etnias de vários lugares, onde os descendentes de europeus se acham os descobridores, boa parte do nosso Pampa foi destruído antes mesmo de ser estudado. E a cada ano, novas descobertas são realizadas.
No dia 17, o Laboratório de Estudos em Vegetação Campestre da UFRGS divulgou um estudo que aponta um dado inédito: em um metro quadrado de campo nativo em Jaguarão foram encontradas 64 espécies de plantas. Esse número é algo impressionante, pois em nenhum outro bioma (no Brasil são seis: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga, Mata Atlântica e Pampa) se encontrou tamanha diversidade! Antes, já tinham encontrado 50 espécies diferentes e já era um achado. Tudo isso denota o quanto ainda precisamos pesquisar, estudar e valorizar esse ambiente que é o menos protegido do Brasil. Mais especificamente por porções de terras protegidas chamadas tecnicamente de Unidades de Conservação (UCs). Não temos um parque nacional, um parque público aberto à visitação com um mínimo de infraestrutura para cumprir suas funções de pesquisa, educação ambiental e entretenimento no Estado.
Creio que a maior parte do pessoal que mora no Pampa não tem a menor noção do que a situação dele significa. Pior: acha que pode fazer qualquer coisa, já que “não há desmatamento” e dá para plantar qualquer coisa, de árvore a braquiária. O correto, pela Ciência, é se referir à destruição desse tipo de ambiente como supressão da vegetação campestre.
Perdas para todos, ganhos para quem?
A porção brasileira do Pampa já perdeu 28% da sua vegetação nativa entre 1985 e 2023, de acordo com os dados mais recentes da Coleção 4 do MapBiomas Pampa Trinacional. O trabalho monitora o uso e a cobertura da terra do bioma no Brasil, Argentina e Uruguai (bem onde se configura a formação da cultura gaudéria). Foi a maior taxa de perda de biodiversidade na comparação entre os três países nesse período. Proporcionalmente ao seu tamanho, o Pampa brasileiro também foi o que mais perdeu vegetação nativa entre todos os biomas brasileiros desde 1985. A conversão foi impulsionada principalmente pela expansão do cultivo de soja e pelo crescimento da silvicultura, leia-se, cultivo de pinus e eucalipto, principalmente.
O impacto ambiental da silvicultura é maior justamente nas regiões com campos nativos: no bioma Pampa e nos Campos de Altitude, um ecossistema associado à Mata Atlântica. Leia a reportagem que fiz sobre a flexibilização da legislação. Isso sem considerar as milhares de viagens de carretas que transitam com toras de madeira diariamente nas famigeradas estradas gaúchas.
O crescimento exponencial das áreas de silvicultura aumentou 1600% em 39 anos, passando de 44 mil hectares em 1985 para 773 mil hectares em 2023. Nos últimos dez anos, a perda da vegetação nativa do Pampa tem aumentado muito e deverá continuar ainda mais com a ampliação da produção de celulose da CMPC.
Há vários fatores que podem estar nos influenciando no distanciamento dessa riqueza, inclusive de valor intangível, de tudo que o Pampa representa. Arrisco escrever algumas: muitas narrativas mentirosas têm sido espalhadas para que o mercado faça o que bem quiser para exportar matérias-primas produzidas no Pampa (aliás, nem só nesse bioma, né?); a ausência de governança e estratégias de desenvolvimento sobre o uso da água, no manejo do solo etc.; a ideia de que campo é menos importante que floresta; o aumento do preço pago a culturas de curto prazo, como a soja, que vai virar algum insumo para alimentar bichos; a desvalorização da vida no campo etc. Enfim, há muitas outras hipóteses.
Para ter uma ideia do quanto estamos descuidando do nosso ambiente, o Rio Grande do Sul, que já foi berço da legislação de proteção ambiental, onde foi criado o primeiro comitê de bacia hidrográfica do País, hoje é o estado mais atrasado na condução do Cadastro Ambiental Rural e dos Programas de Regularização Ambiental. Será que isso tem a ver com a vontade política do governo do Estado?
Saiba mais
O Pampa dispõe de 10 sistemas ecológicos (tipos diferentes de paisagens regionais com variações na vegetação nativa), sendo nove campestres e um florestal. A Rede de Campos Sulinos tem feito um trabalho de conscientização sobre a necessidade de preservação do campo nativo. Clique aqui para conferir um dos meus primeiros textos aqui na Sler que foi justamente sobre a Coalizão pelo Pampa, em 2022.