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Opinião

O negacionismo explícito de Melo & Cia na destruição do Parque da Harmonia

O negacionismo explícito de Melo & Cia na destruição do Parque da Harmonia

Artigo por RED
05/08/2023 05:30 • Atualizado em 07/08/2023 10:14
O negacionismo explícito de Melo & Cia na destruição do Parque da Harmonia

De WALTER MORALES ARAGÃO*

Verdade é dizer do que é, que é. E do que
não é, que não é.
Aristóteles, filósofo de Estagira, Macedônia.

“Por que é que calça a gente bota e bota a gente calça?” A charada pueril envolve, obviamente, o uso proposital de equívocos: vocábulos grafados identicamente significam ora verbos, ora substantivos. O governo municipal de Porto Alegre, semelhantemente, mas sem graça alguma, trata de modo infantil os munícipes e a população que frequenta a cidade. Faz isso quando, em coro com sua empresa concessionária, afirma estar transformando o parque da Harmonia em “parque urbano”. O parque da Harmonia que porto-alegrenses e visitantes conheciam, a área prestadora de serviços ambientais preciosos nestes tempos de crise climática, foi destruída de modo brutal. A “ilha de frescor” que Porto Alegre possuía está sendo trocada por uma “ilha de calor”, mesmo sob a fúria notória do aquecimento global.

Melo & Cia. – talvez uma empresa de demolições não assumida – está impondo outra coisa no local devastado e intensamente remexido onde ficava até a pouco o parque da Harmonia. Pense-se, numa comparação, se o Inominável Inelegível, numa reeleição felizmente não ocorrida, transformasse toda a região amazônica em fazendas de gado extensivas e, por acaso, continuasse a chamar o ajuntamento todo de “Amazônia”. Muitos dos devotos do “Mito” considerariam a catástrofe ambiental, hipotética, um progresso elogiável. O superaquecimento solar decorrente no território e no país seria até visto como um saudável fim daquela umidade toda. Escalas diferentes à parte, é exatamente o que o governo municipal atual está fazendo, presentemente, naquele trecho da orla do Lago Guaíba. Está ocorrendo, aqui e agora, explicitamente, um caso prático de negacionismo climático.

Não venham doravante, portanto, o prefeito e seus subordinados, aliados e apoiadores ousarem empregar a palavra “sustentabilidade” em público! A menos que seja a sustentação do dito “capitalismo de despossessão”. Ao invés de fazer o investimento privado, de entretenimento, por exemplo, em local adequado ambientalmente, o capital oportunista aproveita a presença circunstancial de aliados em governos para capturar recursos públicos
valiosos – como localizações de potencial turístico – a preço vil. Concentração de riqueza através da despossessão de bens da comunidade, transferidos e/ou explorados por prazos longos, em proveito de alguns poucos particulares. O que pode até estar ferindo o princípio jurídico – aceito até por liberais civilizados – da prevalência do interesse público sobre o particular.

O parque da Harmonia, enquanto micro-ecossistema naturalmente gerado em décadas sobre a orla, foi gravemente danificado, inequivocamente alterado. É de se averiguar, tecnicamente, a muito provável ocorrência de crimes ambientais no caso concreto. O que a recente liminar na primeira instância do judiciário estadual, solicitada pela cidadania ambientalista, permitirá, contribuindo para minimizar os danos do atentado já cometido.

Eu mesmo, morador do vizinho Centro Histórico, fazia ali observações amadorísticas de pássaros e de exemplares vegetais que desapareceram na devastação. Asas-de-telha, cardeais, canários-da-terra, sabiás-poca, almas-de-gato, sabiás-da-praia, quero-queros. Sumiram, expulsos ou mortos. Não poderei mais fotografá-los ou mostrá-los durante caminhadas com as visitas. E as gerações futuras do Centro Histórico talvez só possam conhecê-los pelas imagens na internet.

Por isso, soou-me acintosa a fala do atual secretário de meio ambiente (sic) do município ao Jornal da RBS em 31/7 próximo passado. Ao referir-se às repercussões da liminar de paralização das obras como causadora de suposto dano ao Acampamento Farroupilha de 2023, disse que aquela área era “utilizada apenas uma vez ao ano” e que, com a transformação pretendida, passaria a ser usada em muitos dias mais.

Veja-se que não se pode, realmente, confundir a economia de mercado – em sentido largo – com o capitalismo. Aquela pode funcionar empregando o valor de troca, a lucratividade, em ritmos ambiental e humanamente suportáveis, que tornaram milenares muitas cidades mercantis. Já o capitalismo selvagem vociferou na fala sincera – ou cínica – do secretário: é o sistema que busca o lucro máximo, o mais rapidamente possível, não se importando com o que destrói. “Jorrando sangue por todos os poros”, na descrição precisa de Karl Marx. Com o governo de Melo & Cia até mesmo a OTAN e os neofascistas brasileiros podem entrar em acordo: têm a crença em comum de que a guerra pode ser mesmo um negócio excelente – em termos numéricos, evidentemente. Não em termos éticos. Talvez uma prática de parresia filosófica helenística, onde a verdade é um escândalo para o bom senso, mas não é assumida social e politicamente como tal. Ao menos não pelos dominantes e seu poder de influência.

E um comentário à parte pode ser feito sobre a atividade tradicionalista no local. Nativistas e ambientalistas, neste caso, são aliados nos princípios, pois as máquinas remexeram simbolicamente os ossos de Paixão Cortes, de Jaime Caetano Braun (terão mexido também na estátua que estava por ali?), de Noel Guarani e outros(as) próceres. Os/as fundadores/as e continuadores/as do cultivo da tradição gauchesca ficariam em choque com a visão da projetada roda gigante na paisagem ao fundo dos galpões do Acampamento Farroupilha. E de apenas asfalto e brita para os cavalos pisarem. O capim ali espontâneo, talvez de espécie nativa, matéria do Pampa fundamental, viabilizador das ainda milhares de propriedades de pecuaristas familiares do estado, foi raspado até a última folha no Parque da Harmonia. Impressionaram à magistrada as fotos aéreas com imagens da terra sem vegetação, no que tinha sido antes um parque, precipuamente voltado a oportunizar o convívio com a natureza. Ah, dizem, terá recomposição posterior, embora em meio ao pavimento em blocos de concreto e às milhares de lâmpadas que ofuscarão o Cruzeiro do Sul. Sem dúvida, isso será outra coisa. Quanto a ser melhor, há uma fundamentada controvérsia democrática.


*Professor de Filosofia e Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. É participante do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.

Imagem: Divulgação PMPA.

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