Opinião
O mito econômico chileno 50 anos depois do golpe de Pinochet
O mito econômico chileno 50 anos depois do golpe de Pinochet
De RICARDO DATHEIN*
Uma crença internacionalmente bem difundida é sobre o sucesso econômico do Chile a partir das reformas neoliberais de Pinochet. Tanto que, no geral, essas políticas continuaram nos vários governos posteriores, no sentido de transformar (ou manter) como mercadoria tudo o que for possível da vida das pessoas, não como direitos sociais universais, para todos, independentemente do poder de compra de cada um.
De fato, segundo os dados da The Conference Board Total Economy Database, a produtividade do trabalho na economia chilena em 2019 foi 61% superior à do Brasil. Ou seja, nesse quesito, a economia chilena estava em situação muito superior à do Brasil. No entanto, em 1950 a produtividade chilena já era 67% superior à brasileira, de forma que ela não é simplesmente o resultado do “sucesso” neoliberal chileno. Mas, ao longo desse período, as trajetórias foram muito distintas. De 1950 a 1980, com o forte desempenho durante o período Desenvolvimentista, o Brasil conseguir igualar sua produtividade à do Chile. Em 1980, a produtividade brasileira foi inclusive 8% superior à desse país. No entanto, com o fracasso brasileiro posterior a 1980, a diferença novamente pendeu para o Chile, mas isso se deveu mais à estagnação brasileira do que a algum notável desempenho chileno.
Comparando o Chile com o Brasil e a Coreia do Sul (por exemplo), pode-se perceber melhor o contraste. De 1980 a 2019 a produtividade chilena cresceu de um índice 100 para 177, o que resulta em uma média anual de 1,5%. A Coreia, por outro lado, passou de um índice 100 para 491, com média de 4,2% ao ano. E o Brasil, passou de um índice 100 para 102, depois de 39 anos. Ou seja, o Brasil está estagnado há 4 décadas. Então, é claro que, quando comparada com o Brasil (ou outros países da América Latina), a performance chilena é muito superior. No entanto, quando comparada com o desempenho de países asiáticos, como a Coreia, essa aparece inclusive como relativamente fraca.
O período de Pinochet foi do golpe de 1973 até 1990. Nessa fase, a produtividade cresceu em média apenas 0,7% ao ano. Houve um crescimento inicial, após a forte crise anterior (ou seja, uma recuperação que é relativamente fácil de alcançar), mas no início dos anos 1980 uma crise reverteu esse crescimento. No período posterior ao governo Pinochet, de 1990 a 1997, aí sim, de fato o crescimento da produtividade foi forte, de 5,0% ao ano, seguindo o ritmo coreano. Os liberais sempre poderão argumentar que esse crescimento foi, finalmente, o resultado das reformas anteriores. Mas depois desse breve período esse ritmo foi revertido, com queda da taxa de lucro, tendo em vista a tendência de redução dos termos de intercâmbio para a economia chilena. Nos anos 1997-2008 o crescimento da produtividade foi de 2,1%, em média anual, muito inferior ao ritmo coreano, mesmo tendo sido esse o período que incluiu o boom das commodities, por conta do efeito China. A seguir, de 2008 a 2019, a produtividade do trabalho cresceu a um ritmo muito baixo, com uma média de apenas 0,4% ao ano. Essa baixa taxa deve ser um dos causadores do mal-estar político chileno do período, com governos que insistiram na manutenção de um modelo de desenvolvimento que não mostrava resultados promissores há muito tempo.
Além disso, a concentração de renda e riqueza no Chile é extrema. Segundo o World Inequality Database, com dados antes dos impostos, para 2020, os 10% da população com maior renda possuíam 58,9% da renda total, enquanto o 1% de maior renda concentrava 26,5%. Na outra ponta, os 50% da população com menor renda possuíam apenas 10,2% da renda total. Para a desigualdade de riqueza líquida, os dados mostram que os 10% mais ricos possuíam 79,8% da riqueza chilena e o 1% mais rico possuía 47,8%, enquanto os 50% mais pobres possuíam -0,6%. Esse dado negativo indica que a metade mais pobre da população chilena possuía mais dívidas do que riqueza financeira e não financeira acumulada. Uma curiosidade é que esses dados são semelhantes aos do Brasil, que, como sabemos, é um dos campeões mundiais de desigualdade.
Um dos elementos cruciais do desenvolvimento é o aumento da complexidade e da sofisticação produtiva (e, portanto, da complexidade e sofisticação das ocupações da força de trabalho), o que faz crescer a taxa de lucro e, com isso, estimula mais investimentos, aumentando também a competitividade internacional dos países, além de dar sustentabilidade ao crescimento e às políticas sociais. Nesse quesito, o Chile está mal posicionado, situando-se em 2019 no 71° lugar, segundo o Atlas da Complexidade Econômica.
Um grave problema econômico do Chile é sua excessiva dependência da exportação de commodities, fundamentalmente de cobre. Isso lhe confere uma renda que deveria ser usada para a complexificação da economia. Caso contrário, a economia e a sociedade ficarão sempre dependendo dos humores dos mercados internacionais de commodities.
A elite conservadora chilena vive politicamente de um mítico período que ocorreu há mais de 25 anos atrás, após o governo Pinochet. E os liberais conservadores brasileiros repetem essa versão. As rendas derivadas das exportações chilenas deveriam ser vistas como uma vantagem, uma oportunidade, para a complexificação e sofisticação produtiva e para as melhorias sociais e distributivas do Chile, ao invés de promoverem a acomodação.
A maioria do povo chileno demostrou nas últimas eleições uma capacidade de análise econômica muito superior à dos economistas liberais, que servem aos interesses conservadores chilenos. Surgiu uma grande esperança e oportunidade. O novo governo não deveria perder essa oportunidade histórica (aparentemente está perdendo), tentando apenas medidas de cunho liberal clássico, mas que também perceba que a estrutura econômica precisa mudar. Isso é necessário para dar sustentabilidade econômica, social e política ao governo, rompendo com o neoliberalismo pelo ângulo distributivo, mas também e fundamentalmente na órbita produtiva e ocupacional da população trabalhadora. Caso contrário, com uma esquerda “arrejada”, como dizem os liberais, tem-se o caminho certo para o fracasso. O que também vale para o Brasil.
*Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS.
Uma versão anterior desse texto foi publicada no Sul21.
Imagem em Pixabay.
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.
Toque novamente para sair.