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Opinião

O Grande Capital e o Nazismo

O Grande Capital e o Nazismo

Artigo por RED
03/11/2022 08:23 • Atualizado em 04/11/2022 10:06
O Grande Capital e o Nazismo

De LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

21 de outubro de 2022, Guilherme Amado, editor do site Metrópoles colheu opiniões na Faria Lima:

– Jair Bolsonaro é o nome preferido da maioria do mercado, embora Lula tenha seus apoios;

– As pesquisas apontam que provavelmente há um movimento de subida de Bolsonaro, que é fraco, mas existe;

– Talvez mais apoiados no wishful thinking do que em dados objetivos, a leitura da maioria é que Bolsonaro leva.

Diante dessas respeitáveis opiniões, ofereço abaixo a reprodução de trechos escolhidos do livro de Eric Vuillard, A Ordem do Dia. Imagino que a leitura possa confirmar a observação atribuída a Mark Twain: “A história não se repete, mas rima”.

24 de fevereiro de 1933. Vinte e quatro pesos pesados da economia alemã desembarcaram no Reichstag. Desceram de seus luxuosos sedans envoltos em sua casacas marrom-escuras e foram acolhidos na sala de reuniões. Ao redor da mesa estavam Gustav Krupp, Albert Vögler, Günther Quandt, Friedrich Flick, Ernst Tengelmann, Fritz Springorum, August Rosterg, Ernst Brandi, Karl Büren, Günther Heubel, Georg von Schnitzler, Hugo Stinnes Jr., Eduard Schulte, Ludwig von Winterfeld, Wolf-Dietrich von Witzleben, Wolfgang Reuter, August Diehn, Erich Fickler, Hans von Loewenstein zu Loewenstein, Ludwig Grauert, Kurt Schmitt, August von Finck, e Dr. Stein. Estamos no nirvana da indústria e finanças. Eles se sentaram, em silêncio, bem-educados, e um pouco sonolentos por terem esperado por quase vinte minutos.

Acomodados em suas poltronas, os 24 entregaram-se aos trejeitos da espera. Na primeira fila, Gustav Krupp abanava seu rosto rubicundo com a luva. Sacou seu lenço: ele tinha um resfriado. Com a idade, seus lábios finos começavam a formar um crescente inverso desagradável. Ele parecia triste e preocupado. Mecanicamente, ele torceu um belo anel de ouro, através da neblina de suas esperanças e cálculos — e é possível que, para ele, essas duas palavras tivessem  apenas um único significado, como se tivessem sido desenhadas magneticamente juntas.

Repentinamente, as portas rangeram, o assoalho gemeu; os sons das falas já vazavam da antessala. Os 24 bacanas subiram em suas patas traseiras e ficaram firmes. Hjalmar Schacht engoliu sua saliva; Gustav Krupp ajustou seu monóculo. Atrás da porta, eles ouviram vozes abafadas. Em seguida, o Presidente do Reichstag, o próprio Hermann Göering, entrou sorrindo na sala. Isso não foi surpresa, realmente, apenas uma ocorrência cotidiana. No grande esquema dos negócios, políticos e industriais rotineiramente lidavam uns com os outros.

Goering deu a volta na mesa com uma palavra para cada um dos presentes, agarrando cada mão em um aperto de boas-vindas. Mas, o Presidente do Reichstag não tinha vindo apenas para recebê-los. Ele murmurou algumas
palavras de saudação, e imediatamente, mencionou as próximas eleições, em 5 de março.

As 24 esfinges ouviram atentamente. A campanha eleitoral seria crucial, anunciou o Presidente do Reichstag. Era hora de se livrar do regime de Weimar de uma vez por todas. A atividade econômica, acentuou Goering, exige calma e estabilidade. Os vinte e quatro cavalheiros assentiram solenemente. E se o Partido Nazista ganhasse a maioria, acrescentou Goering, estas seriam as últimas eleições por dez anos — até mesmo, acrescentou ele com uma risada, por cem anos.

Uma onda de aprovação varreu os assentos. Naquele momento, havia um som de portas, e o novo chanceler finalmente entrou na sala. Aqueles que não o conheciam estavam curiosos para vê-lo pessoalmente. Hitler estava sorrindo, relaxado, nada parecido com a figura que eles imaginavam: afável, sim, até mesmo amigável, muito mais amigável do que eles teriam pensado.

Para cada um dos presentes, ele tinha uma palavra de agradecimento, um aperto de mão afável e forte. Feitas as apresentações, todos tomaram novamente suas cadeiras confortáveis. Krupp estava na primeira fila, pegando seu bigode minúsculo com um dedo nervoso.

Logo atrás dele, dois diretores da IG Farben, juntamente com von Finck, Quandt, e alguns outros, cruzaram suas pernas. Houve uma tosse cavernosa. Depois, silêncio, silêncio.

Eles ouviram. A ideia básica era a seguinte: eles tinham que acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, eliminar sindicatos e permitir que cada empresário fosse o Führer de sua própria empresa. O discurso durou meia hora. Quando Hitler terminou, Gustav Krupp levantou-se, deu um passo à frente, e, em nome de todos os presentes, agradeceu-lhe por ter finalmente esclarecido a situação política. O chanceler deu uma volta rápida em torno da mesa quando saiu. Eles o parabenizaram cortesmente. Poderia ter sido uma ovação, mas os protocolos que supervisionavam as hipocrisias dos alemães ricos não permitiam tal coisa.

Os velhos industriais pareciam aliviados. Uma vez que Hitler havia partido, Goering tomou a palavra, reformulando energicamente várias ideias. Em seguida, retornou às eleições de 5 de março. Para montar uma campanha eleitoral  bem sucedida, os nazistas precisavam de dinheiro. Naquele momento, Hjalmar Schacht levantou-se, sorriu para a assembleia, e gritou: “E agora, senhores, hora de contribuir!”

O convite não era novidade para esses homens, que estavam acostumados a propinas. A corrupção era um item de linha irredutível no orçamento das grandes empresas, e atende por vários nomes: despesas de lobby, presentes, contribuições políticas. A maioria dos convidados imediatamente entregou centenas de milhares de marcos. Gustav Krupp deu um milhão, Georg von Schnitzler da IG Farben 400 mil, e assim eles arrecadaram uma grande quantia. Aquela reunião de 20 de fevereiro, que pode nos parecer um momento único na história corporativa, um = compromisso sem precedentes com os nazistas. Nada disso, a turma dos Krupp, Opel e Siemens trataram o episódio como uma transação comercial, uma captação de fundos.

Dia 27 de fevereiro ocorreu o incêndio do Reichstag. A culpa foi atirada às costas dos comunistas e social-  democratas. A eleição parlamentar de 5 de março foi marcada pela violência nazista contra os adversários. Apesar das tropelias Hitler não conseguiu a vitória esmagadora: apenas 43,9% dos votos foram para o NSDAP, o que significava 288 dos 647 assentos do Reichstag.

Não importa, Hitler consegui aliados para esmagar e cassar os adversários e na eleição farsesca de novembro de 1933, o Partido Nazista disputou praticamente sozinho.

Chegamos à primavera de 1944. Gustav Krupp que, no início desta história, entregou grana aos nazistas e sustentou o regime em seus primeiros momentos, jantava em companhia de sua esposa, Bertha, e de seu filho mais velho, Alfried, o herdeiro do Konzern. Era seu último momento na Vila Hügel, o enorme palácio onde sempre tinham vivido e onde o poder estava encarnado. Nesse momento, a aventura nazi-corporativa tomava uma direção ruim. Os exércitos alemães recuavam de todos os lugares.

De repente, o velho Gustav se levantou. Fazia muito tempo que tinha sucumbido a uma imbecilidade sem retorno. Incontinente e senil, estava em silêncio havia anos. Entretanto, nessa noite, no meio da refeição, se endireitou bruscamente e, segurando o guardanapo contra si com um gesto cheio de medo, estendeu um longo dedo magro para o fundo da sala, para além de seu filho, e resmungou:

— Mas quem são todas essas pessoas?

E o que ele viu, o que se ergueu lentamente da sombra, eram dezenas de milhares de cadáveres, os trabalhadores forçados, aqueles que a SS tinha fornecido para suas fábricas. Eles saíam do nada. Durante anos ele tinha alugado deportados em Buchenwald, em Flossenbürg, em Ravensbrück, em Sachsenhausen, em Auschwitz e em muitos outros campos. A expectativa de vida deles era de alguns meses. Se o prisioneiro escapava das doenças infecciosas, morria literalmente de fome. Mas Krupp não foi o único a alugar tais serviços. Seus comparsas da reunião de 20 de fevereiro aproveitaram também; atrás das paixões criminais e das gesticulações políticas, seus interesses se encontravam. A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão-de-obra em Mauthausen. A BMW contratava em Dachau, em Papenburg, em Sachsenhausen, em Natzweiler-Struthof e em Buchenwald. A Daimler, em Schirmeck. A IG Farben recrutava em Dora-Mittelbau, em Gross-Rosen, em Sachsenhausen, em Buchenwald, em Ravensbrück, em Dachau, em Mauthausen, e explorava uma fábrica gigantesca no campo de Auschwitz: a IG Auschwitz, que com todo cinismo colocou esse nome no organograma da firma. A Agfa recrutava em Dachau. A Shell, em
Neuengamme. A Schneider, em Buchenwald. A Telefunken, em Gross-Rosen e a Siemens, em Buchenwald, em Flossenbürg, em Neuengamme, em Ravensbrück, em De uma chegada de seiscentos deportados, em 1943, nas fábricas Krupp, um ano mais tarde não restavam mais que vinte. Um dos últimos atos oficiais de Gustav, antes de ceder as rédeas a seu filho, foi a criação da Berthawerk, uma fábrica concentracionária com o nome de sua esposa, que deveria ser um tipo de homenagem. Ali se vivia preto de sujeira, infestado de piolhos, andando cinco quilômetros tanto no inverno como no verão em simples galochas, para ir do campo à fábrica e da fábrica ao campo. Ali se acordava às quatro e meia, ladeado por guardas SS e cachorros treinados, ali se era espancado, torturado. Quanto à refeição da noite, durava às vezes duas horas; não que alguém demorasse para comer, mas porque era preciso esperar; não havia tigelas suficientes para servir a sopa.

O Nazismo não promoveu a estatização da economia, mas, sim, a privatização do Estado.


*Economista, Professor Titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor de livros como Nos tempos de Keynes (São Paulo: Contracorrente, 2016).

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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