Opinião
O Governo Lula 3: retorno ao desenvolvimentismo?
O Governo Lula 3: retorno ao desenvolvimentismo?
De ANDRÉ MOREIRA CUNHA*
A Transição e a Ponte para o Passado
O Gabinete de Transição Presidencial apresentou o seu “Relatório Final” no qual faz o diagnóstico do que denomina de “o desmonte do Estado brasileiro e das políticas públicas durante os quatro anos do governo Bolsonaro.” (p.6). O coordenador do Grupo de Transição e vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, resumiu da seguinte forma o quadro encontrado: “Desde que entrei na vida pública, nunca vi nada parecido … A impressão que se tinha é de que não havia gestão e que tudo era decidido aleatoriamente … Há documentos desaparecidos, há apagões de dados que sempre existiram em governos anteriores e há rombos financeiros inexplicáveis.”.
Há um relativo consenso entre analistas com distintas visões teóricas e inclinações políticas de que a “Era Bolsonaro” deixa um legado negativo. Mesmo os defensores das políticas de recorte neoliberal, particularmente o “Teto de Gastos”, as mudanças na legislação trabalhista e as privatizações, admitem que o Estado brasileiro foi conduzido a um ponto de se inviabilizar a execução das políticas públicas em áreas essenciais como saúde e educação. Diante desta realidade, estes mesmos analistas manifestam um temor de “volta ao passado” no governo Lula 3. Para o sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o risco colocado é de “…retomar aos modos de trabalho e políticas desastrosas, econômicas e sociais, que levaram ao país à maior recessão de sua história, desencadeando uma crise política que resultou no desastre do bolsonarismo.”.
Para Schwartzman, o pior desempenho da história da economia brasileira, verificado entre 2016 e 2022, quando a renda per capita variou em -0,5% a.a. (ver tabela 1), não está relacionado com a “Ponte para o Futuro” adotada no período, mas com as políticas da “Era PT” (2003-2015). Esta mesma interpretação é verificada na lavra de próceres do mercado financeiro e de economistas que ocuparam funções de alto relevo na República em períodos onde as políticas de desmonte do Estado e de liberalização econômica foram prioridades. Tais governos não entregaram crescimento robusto com inclusão social ou estabilidade macroeconômica. Há uma gama variada de análises críticas ao suposto “desenvolvimentismo” dos governos petistas em artigos de opinião reunidos no portal do think tank “Casa das Garças”. Mais difícil será encontrar nestes analistas o mesmo esforço em reconhecer, como fazem intelectuais conservadores como Francis Fukuyama ou os economistas do FMI, que o fracasso do neoliberalismo germinou o avanço dos governos iliberais, dentre os quais o que agora finda no Brasil.
O conceito de desenvolvimentismo tem sido muito mal tratado. Usualmente ele é confundido com “ativismo estatal” em geral, o que é um equívoco. Conforme nos esclarece o Professor Pedro Fonseca, no mais robusto estudo acadêmico sobre o tema, o desenvolvimentismo é “… a política econômica formulada e/ou executada, de forma deliberada, por governos (nacionais ou subnacionais) para, através do crescimento da produção e da produtividade, sob a liderança do setor industrial, transformar a sociedade com vistas a alcançar fins desejáveis, destacadamente a superação de seus problemas econômicos e sociais, dentro dos marcos institucionais do sistema capitalista.”. Há poucas dúvidas que os governos do PT se caracterizaram pelo ativismo estatal. Porém, é passível de ampla discussão se os mesmos foram “desenvolvimentistas” no sentido antes exposto. Conforme evidenciamos em artigos recentes – “Lula e o colapso do crescimento” e a “Nova Década Perdida” –, nas últimas duas décadas houve exatamente o contrário de “desenvolvimentismo”: a desindustrialização se aprofundou e não houve ganhos de produtividade dignos de nota.
Para os economistas liberais, refratários ao ativismo estatal indutor de mudanças na estrutura de produção e de distribuição da riqueza privada, tais distinções não seriam relevantes. Eles enfatizam a clivagem entre as “políticas corretas”, usualmente as adotadas durante os governos em que atuaram diretamente ou cujos tomadores de decisão assumiram posições convergentes com as por eles propugnadas; e as “políticas erradas”, sendo estas associadas ao não conhecimento da boa teoria econômica. Não raramente, as “políticas erradas” são aquelas marcadas pelo ativismo estatal. Todavia, tal perspectiva ganha contornos mais complexos quando se observa que: (i) o desempenho econômico brasileiro foi muito superior na era desenvolvimentista (ver tabela 1); e (ii) do ponto de vista de comparações internacionais, as economias mais bem-sucedidas em sustentar longas trajetórias de expansão são as que optaram por não seguir estritamente o caminho proposto pela agenda neoliberal, conforme reconhece o próprio FMI.
Os economistas liberais brasileiros têm dificuldades em explicar o fracasso de países tão grandes e complexos como o Brasil, que compartilham várias de suas características institucionais, e que implementaram as políticas de redução do Estado e de liberalização recomendadas por eles. O caso do México é particularmente destacado. Nos últimos trinta anos este país manteve níveis baixos de gasto e de arrecadação – em cerca de 10 p.p. do PIB menores do que no Brasil – liberalizou sua economia, integrou-a estruturalmente com seus vizinhos, mas não escapou da “armadilha da renda média”. Seus níveis de crescimento foram pífios (ver tabela 1).
Os Números e as suas Interpretações
Não é trivial o exercício de avaliar o desempenho dos governos, particularmente em uma quadra histórica onde a sociedade está polarizada e se projeta grande desconfiança sobre o conhecimento especializado. Cientistas sociais se depararam com as dificuldades em separar os aspectos subjetivos que todos carregamos, nossas visões de mundo e valores, dos elementos estritamente objetivos das realidades em análise. Estas, por sua vez, podem se alterar por efeito das próprias decisões dos indivíduos e dos grupos sociais que são estudados, os quais, por sua vez, são influenciados pelas ideias e políticas que se originam nas teorias. Nas Ciências Sociais as fronteiras entre “aquilo que é”, a realidade observada, e aquilo “que se deseja ser” são muito mais tênues do que nas Ciências Naturais. As forças da natureza não são dotadas de vontade própria, de livre arbítrio ou condicionadas pelo mundo das ideias, ainda que os cientistas possam ser influenciados por seus valores quando da realização de suas investigações.
A Economia, que é um dos ramos das Ciências Sociais, possui um arsenal amplo e diverso de teorias e de metodologias que permitem minimizar os diversos vieses criados pela subjetividade. Todavia, as próprias teorias e metodologias são construídas a partir de aspectos ontológicos, epistemológicos e heurísticos não neutros. A interpretação dos resultados gerados por suas análises e as consequentes derivações normativas são ainda mais suscetíveis às influências dos valores impregnados nos analistas. Por isso mesmo, a construção de políticas públicas nunca é plenamente neutra diante das prioridades derivadas da subjetividade dos agentes por elas responsáveis. Não à toa, Keynes propugnava que a Economia é uma ciência moral.
Além de buscar identificar os fatos objetivos da realidade social, há o desafio de se estabelecer os elos causais que os formatam. Aqui, nem mesmo o uso da linguagem matemática garante a separação plena entre as convicções (ou interesses) dos analistas e o resultado de suas interpretações. O estudo sobre o desempenho dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) entre 2003 e 2015 oferece insights importantes nesta seara. Até porque, seus defensores e críticos sempre o colocam como um marco de referência.
Comecemos pelos fatos, ou pelo menos uma aproximação a eles. A tabela abaixo mostra o crescimento do produto interno bruto por habitante (PIB) – ou renda per capita – de economias selecionadas.
Total Economy Database
A tabela traz alguns resultados interessantes para o período dos governos do PT (2003-2015): (i) dentre as 28 economias selecionadas, as quais representam aproximadamente 90% do PIB global, o Brasil ocupou a 17ª posição no ranking de crescimento; (ii) ao se comparar tal desempenho com grupos analíticos, a economia brasileira só não foi pior do que o G7, vale dizer, os países de alta renda mais influentes na ordem global (EUA, Reino Unido, Canadá, Alemanha, França, Itália e Japão); (iii) a variação da renda per capita brasileira (+1,9% a.a.) representou menos da metade da expansão média dos países mais dinâmicos do mundo na Ásia emergente (4,7% a.a.), ficando quase 1 p.p. abaixo da média das quatro maiores economias da América Latina (AL 4 com +2,8% a.a.) , com exceção do próprio Brasil, e aquém da média mundial (+2,9% a.a.) e dos demais emergentes destacados (+3,2% a.a.) – África do Sul, Rússia, Turquia, Polônia e República Tcheca. Ainda assim, os anos da “Era PT” foram melhores do que os dos períodos 1981-2002 (+0,4% a.a.) e 2016-2022 (-0,5% a.a.), mas bem piores do que no auge desenvolvimentista (+4,5% a.a.), entre 1951 e 1980. Aliás, neste momento histórico, o Brasil cresceu mais do que a média global e do que os demais grupos analíticos.
Se as paixões fossem utilizadas para ler a tabela, alguns comemorariam o fato de a “Era PT” ser muito melhor do que os demais que se seguiram à redemocratização do país. Ainda assim, seria forçoso reconhecer a incapacidade de alcançar o sucesso dos anos do auge desenvolvimentista (1951-1980). Lida por outro ângulo, talvez mais crítico, poder-se-ia afirmar que o crescimento petista sequer foi medíocre quando comparado ao de outros países de renda média. Isoladamente, os fatos acima elencados não nos permitem discutir causas e consequências, vale dizer, responder questões como: (i) o que permitiu a aceleração no crescimento durante a “Era PT”? (ii) esta aceleração foi resultado de políticas implementadas por estes governos ou pelos que o antecederam? (iii) o ambiente externo foi determinante para o maior dinamismo relativo? (iv) e a posterior desaceleração se originou em decisões “erradas” dos governos petistas e/ou em aspectos da economia global?
Comparações equivalentes em dimensões sociais chegam a resultados similares. As matrículas nos três níveis do ensino, a expectativa de vida ao nascer, o desenvolvimento humano, dentre outros, avançaram em linha com o que ocorreu nos países de renda média, no restante da América Latina e em nível mundial. Ou seja, a despeito do sucesso das políticas de inclusão social, especialmente o Bolsa Família, nenhum resultado específico do período 2003-2015 foi significativamente distinto daqueles obtidos em outros países. Em alguns indicadores o Brasil foi um pouco melhor, em outros, um pouco pior. Visto pelo prisma das paixões políticas, pode-se enaltecer o desempenho superior dos governos do PT na área social em comparação aos governos que o antecederam e o sucederam. Poder-se-ia, igualmente, apontar que seus avanços foram tímidos em termos internacionais ou mesmo abaixo dos que seriam necessários para um processo efetivamente transformador da realidade estrutural de exclusão e de desigualdade.
Os críticos mais influentes da “Era PT”, usualmente economistas e formadores de opinião que se movem nos marcos das visões predominantes na academia dos países de alta renda – o assim-chamado mainstream economics – admitem que, em certos aspectos e subperíodos, a economia apresentou taxas mais elevadas de crescimento da renda, com maior inclusão social e relativa estabilidade econômica, em comparação com administração anteriores. Todavia, consideram que tais aspectos pontuais se originariam não em virtudes particulares das gestões do PT, mas na continuidade das políticas macroeconômicas e regulatórias “corretas”, herdadas do período 1995-2002, acrescidas dos choques externos favoráveis – o aumento nos preços internacionais dos recursos naturais e a maior demanda chinesa por tais produtos.
Para sermos mais específicos, tal caracterização seria adequada aos governos Lula 1 e 2 até a falência do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, e, assim, ao quadro de agravamento na Crise Financeira Global (2007-2009). O maior ativismo estatal teria sido reintroduzido, dando lustro ao que se denominou de retorno ao “desenvolvimentismo”. Este, por sua vez, era apontado como algo negativo, um vício constitutivo da modernização do país, especialmente a partir da Era Vargas, que parecia ter sido enterrado nos governos de FHC e Lula 1. Com a chegada da presidente Dilma Rousseff ao poder, seguem os críticos, o retorno ao desenvolvimentismo atingiu seu auge, legando ao país a crise que se inaugura em meados de 2014, da qual ainda não submergimos.
Em sua conclusão, o Relatório do Grupo de Transição afirma que a missão dos próximos quatro anos será a de “…recompor o Estado e as políticas públicas, para mudar para melhor a vida da população e para voltar a cultivar a esperança e a alegria de nossa gente.”. Trata-se de um objetivo inequivocamente generoso e, também, ambicioso. Dificilmente ele se concretizará em um período tão curto. Nos treze anos de governos liderados pelo PT o padrão geral de desempenho da economia brasileira melhorou em relação ao seu passado mais recente. Todavia, seguiu muito aquém dos resultados obtidos em outros países, alguns tão complexos como o nosso. Nos anos que se seguiram, o colapso foi tão profundo, que afastou ainda mais o país de quaisquer fronteiras de comparação. Supor que tal resultado se deveu exclusivamente ou principalmente aos desdobramentos no tempo do “desenvolvimentismo” petista é um exercício retórico perigoso. O mesmo pode ser dito para os que imaginam que o período 2003-2015 foi um exemplo de “sucesso” a ser replicado a partir de 2023.
Os governos do PT foram intervencionistas, assim como são todos os governos das modernas economias de mercado. As diferenças reais entre governos têm mais a ver com a qualidade das intervenções e dos resultados alcançados. Neste âmbito, a era PT pode ser considerada superior em relação aos resultados de outros governos brasileiros dos últimos quarenta anos, mas dificilmente se enquadraria como bem-sucedida diante do desempenho de países que têm, de fato, avançado em suas respectivas trajetórias de desenvolvimento. E, mais importante, a era PT não logrou alterar as condições estruturais que aprisionam o Brasil em um quadro de profunda estagnação.
*Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Imagem em Pixabay.
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