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Opinião

O golpe e o equilibrista

O golpe e o equilibrista

Artigo por RED
24/04/2023 14:00 • Atualizado em 26/04/2023 09:55
O golpe e o equilibrista

O golpe fascista ainda não foi totalmente derrotado no Brasil

De BENEDITO TADEU CÉSAR*

O vazamento de vídeo pela CNN Brasil com trechos retirados de 160 horas de gravações das câmeras do Palácio do Planalto no dia da invasão das sedes dos três poderes da República tem algo de estranho a ser explicado.

Quem vazou o vídeo, que estava sob sigilo? Quem fez os cortes nas imagens e o editou e com que propósito? Em que horário(s) foram captadas as imagens do vídeo divulgado, no início, no decorrer ou no final da invasão do Palácio do Planalto?

Terá sido coincidência essas imagens terem sido obtidas e divulgadas às vésperas da semana em que deputados bolsonaristas pretendem instalar a CPMI sobre os atos de 8 de janeiro em Brasília para provar, segundo eles, que o governo Lula foi o “responsável” pelos atos terroristas daquele dia? As imagens do general Gonçalves Dias, ministro chefe do GSI, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, seriam a prova do envolvimento paradoxal do governo Lula nos atos golpistas que visaram derrubá-lo?

Terá sido coincidência as imagens terem sido divulgadas num momento de avanço do julgamento dos responsáveis pelos atos golpistas de 8 de janeiro? Depois de o Ministério Público Militar ter acatado decisão do STF e enviado para aquele tribunal três investigações contra oficiais militares pela atuação no ato golpista de 8 de janeiro? Exatamente no dia em que se iniciou a votação no STF que pode tornar réus a primeira centena de invasores presos no 8 de janeiro? Num momento de criação de pânico coletivo, na véspera do dia em que seriam anunciados possíveis atentados em escolas de todo o país programados, coincidentemente, para a data do nascimento de Adolfo Hitler?

Ainda que, por enquanto, não seja possível responder com segurança a nenhuma dessas perguntas, a análise dos acontecimentos recentes no país pode fornecer pistas para o esclarecimento de todas elas.

 

As recorrentes tentativas golpistas e seu enfrentamento

Começando com as quatro tentativas de golpe às instituições ocorridas nos últimos anos, antes do 8 de janeiro de 2022, todas sem sucesso e todas praticadas por Bolsonaro e seus militares ou com a conivência de ambos (aqui, utilizo o pronome possessivo seus em sentido preciso, pois foram os militares de Bolsonaro – que são muitos, mas não são todos – os que tentaram os golpes).

Listadas em ordem cronológica, as tentativas de golpe ocorreram: 1) no 7 de setembro de 2021, com os discursos de ameaças em Brasília e São Paulo e que, segundo as informações disponíveis, não vingou por problemas operacionais e levou à patética carta de desculpas redigida por Michel Temer e assinada por Bolsonaro; 2) no dia 30 de outubro de 2022, com as operações montadas pela Polícia Rodoviária Federal para impedir que eleitores das regiões com maioria lulista chegassem até suas seções eleitorais; 3) no dia 12 de dezembro, data da diplomação do presidente da República eleito, com as depredações e incêndios em Brasília e 4) no dia 24 de dezembro, com a tentativa de explosão de bomba no aeroporto de Brasília. 

No documento apreendido na casa de Anderson Torres, ex-Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal no 8 de janeiro, explicitava-se a arquitetura institucional do golpe: o questionamento dos resultados eleitorais de 2022 apresentados pelo TSE e a entrega do poder a um colegiado sob controle dos militares bolsonaristas.  

Foi a pronta e eficaz atuação de Lula e sua equipe, com o ministro da Justiça Flávio Dino à frente, e a imediata adesão dos presidentes da Câmara Federal, do Senado e do Supremo Tribunal Federal que desarticulou a tentativa de golpe realizada no dia 8 de janeiro. Houvesse Lula caído na armadilha de decretar a operação de Garantia da Lei e da Ordem, GLO, conforme lhe sugeriram com insistência alguns membros do seu staff, o poder de Estado teria passado aos militares e policiais bolsonaristas que controlavam Brasília, sob a complacência de seu governador, prontamente destituído pelo STF, e de seu secretário de segurança, então refugiado nos EUA junto de Bolsonaro e preso desde seu retorno ao país. Reassumido o controle sobre Brasília, foi possível prender os terroristas que atacaram os palácios e que acampavam em área militar com o consentimento de seu comando.

Reforçando a capilaridade e a sofisticação da série de tentativas golpistas que culminaram no dia 8 de janeiro, outros atentados ocorreram em diferentes estados do país nos dias imediatamente seguintes aquela data, por meio das explosões de torres de energia elétrica em vários estados brasileiros, que resultaram na derrubada de algumas delas, do atentado a uma refinaria de petróleo no Rio de Janeiro e das tentativas de invasão de outras refinarias em outros estados do país.

 

A persistência do golpismo

Estranhamente, nenhum desses graves atentados foi investigado a fundo e seus autores identificados e punidos até agora, o que pode ser um indício da presença e do poder de bolsonaristas ainda instalados em setores estratégicos do governo, principalmente nas áreas de segurança e defesa, fato que expressa os limites de força política do atual governo para realizar rapidamente todas as substituições necessárias.

Além do GSI, onde os subordinados do general Augusto Heleno, antigo ministro chefe daquela pasta, ainda são maioria e controlam cargos de comando em diversos níveis, bolsonaristas continuam exercendo postos de comando em diversas áreas das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e das forças policiais, em muitos ministérios e órgãos públicos federais.

Tomem-se como exemplos os casos amplamente noticiados: 1) do militar que foi vetado por Lula para comandar o 1º Batalhão de Ações Táticas em Goiânia, no episódio que culminou com a demissão do então Comandante do Exército, e que agora ocupa posto na direção do Comando de Operações Terrestres (Coter), em Brasília; 2) da direção da Polícia Rodoviária Federal, cujas superintendências em vários estados continuam sob o comando de bolsonaristas, e 3) da direção do INCRA, órgão responsável pela reforma agrária, os assentamentos e a resolução dos conflitos de terras, cujas superintendências em vários estados continuam sob o comando de bolsonaristas.

Ainda que o governo Lula tenha avançado nas relações internacionais, com as diversas viagens que realizou desde antes da sua posse e que recolocaram o Brasil no cenário internacional do qual havia se excluído durante o governo anterior, no plano interno, com a exceção das medidas prontamente adotadas nas áreas sociais, o governo tem agido com maior lentidão. 

 

Grandes obstáculos ao novo projeto de país

Na economia, o Banco Central e o Comitê de Política Monetária, controlados por bolsonaristas que detêm suas presidências e instalaram um poder concorrente ao do Presidente da República, ancorados na autonomia conquistada no governo anterior, mantêm os juros básicos da economia (a taxa Selic) nas alturas, impedindo qualquer política mais forte de retomada de desenvolvimento e combate ao desemprego.

Na área legislativa, o governo Lula, em ínfima minoria no Congresso Nacional, viu-se obrigado a aceitar a recondução de presidentes com passado bolsonarista, em graus diversos, tanto na Câmara Federal quanto no Senado da República.

Ainda que esta aceitação tenha evitado maiores enfrentamentos até aqui e tenha mantido a possibilidade de diálogo entre os poderes Executivo e Legislativo, garantindo o gesto de boa-vontade realizado ainda antes da posse do novo presidente da República com a aprovação da emenda constitucional que deu fôlego orçamentário para o início do governo, o apoio legislativo buscado e necessário só será testado, nesta primeira etapa governamental,  com a votação do novo arcabouço fiscal, o primeiro grande projeto enviado ao Parlamento.

Sob o fogo do ataque das forças políticas bolsonaristas, o governo Lula tem visto vários de seus ministros serem submetidos a cenas de exibicionismos terroristas midiáticos, promovidas por parlamentares bolsonaristas nas sessões de diferentes Comissões da Câmara e vê-se agora na iminência de ter de aceitar a instalação de uma CPMI sobre os atos golpistas, sem ter a garantia de que poderá direcioná-la para as investigações que de fato interessam, ou seja, a apuração dos reais mentores, promotores e financiadores da tentativa de golpe. De vítima que é, com a capacidade dos bolsonaristas de criar e divulgar fakes news, o governo pode ser apresentado como culpado aos olhos de grande parte do eleitorado que, não se deve esquecer, continua fortemente dividido e radicalizado. A CPMI poderá vir a ser uma batalha a sugar energias e atenção, retiradas de outras importantes frentes de trabalho, sem garantia de resultados positivos e consistentes.  

 

Parceiros institucionais na luta contra o fascismo

Supreendentemente, têm sido nas relações com o Judiciário, que foi o poder responsável pelas maiores perseguições a Lula, desde o episódio do chamado “Processo do mensalão” até a imposição da pena de prisão e de impedimento de sua candidatura em 2018, que o governo Lula tem tido maior sucesso. 

Num momento de crescimento da consciência garantista, depois da exposição pública dos desrespeitos da operação Lava Jato à Constituição e dos crescentes ataques e ameaças bolsonaristas ao Supremo Tribunal Federal, vários dos ministros e das ministras do STF que votaram por condenações injustas e impedimentos ilegais, que coonestaram o golpe de 2016 e que respaldaram reformas que retiraram direitos e promoveram o desmonte do incipiente Estado de Bem-Estar Social desde Temer até Bolsonaro, reveem agora seus votos anteriores e, movidos pelo revigorado respeito estrito à constitucionalidade, restabelecem direitos anteriormente afrontados, determinam investigações e esboçam a possibilidade de punição para atos de Bolsonaro e seus seguidores.

Até mesmo a Procuradoria Geral da República (tecnicamente não integrante do Judiciário, e, desde a Constituição de 1988, quase um poder paralelo na República) acena agora com gestos de complacência a Lula e ao seu governo. Esforçam-se seus integrantes a apagar os vestígios de seus alinhamentos anteriores, inicialmente com o golpismo da gang da Lava Jato do Paraná, de integrantes do TRF4 e de Temer e, depois, com os interesses fascistas do bolsonarismo e com a blindagem de seu comandante. Difícil é prever qual será a duração desse recente apego dos atuais dirigentes deste órgão às leis e aos princípios constitucionais.

 

Na grande mídia comercial, a expressão dos conflitos de projetos econômicos do bloco antifascista

Não surpreendente tem sido a postura da grande mídia comercial. Depois de um início de aparente adesão ao governo, comandada pelas Organizações Globo, desde as eleições até a posse e a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro, com as exceções dos veículos historicamente alinhados ao liberal-fascismo ou controlados por igrejas neopentecostais ligadas à teologia da prosperidade, a grande mídia comercial reassume aos poucos sua postura tradicional. Lula, gradativamente, volta a ser a “liderança equivocada e não confiável” que, desde 1989, assombra os interesses das grandes elites brasileiras e internacionais.

Passado o susto bolsonarista e o risco de que a reeleição o livrasse definitivamente de seus controles, os veículos da grande mídia comercial brasileira, ecoando os interesses dos seus proprietários, integrantes das elites tradicionais brasileiras e das grandes potências internacionais com as quais se alinham, voltam gradativamente suas baterias contra o “equivocado” projeto econômico e social do governo Lula. Não tendo como negar as enormes desigualdades sociais do país, opõem-se, no entanto, à ação do estado na economia e nas relações internacionais para sua solução. 

Na visão da grande mídia comercial, Lula já começou a atacar em diversas áreas e deve ser controlado. No plano econômico, ainda antes da posse, e, portanto, ainda antes da “lua de mel” reservada tradicionalmente aos governantes em início de mandato, passaram a chamar de “PEC da gastança” a proposta de emenda constitucional que garantiu os recursos para os primeiros meses do novo governo.

Depois da posse, a defesa da “autonomia” do Banco Central (frente à Presidência da República, mas não ao “mercado”) passou a ser ponto de honra da grande mídia comercial, exatamente porque ela garante a manutenção da maior taxa de juros do planeta e assegura o pagamento do serviço da dívida pública e os ganhos dos investidores financeiros.

No plano das relações internacionais, a grande mídia comercial minimizou os resultados da viagem de Lula aos EUA e seus esforços para a rearticulação dos mecanismos de consultas multilaterais na América do Sul e Central e, agora, ao mesmo tempo que diminui a importância dos acordos firmados durante a viagem à China nos setores da economia, da cultura e da tecnologia, distorce os discursos presidenciais sobre a nova geopolítica mundial e a multipolaridade em construção, dando destaque aos pretensos ataques à supremacia estadunidense e ao dólar.

Tal como fizera com relação às tentativas governamentais de mediação dos conflitos dos EUA com o Irã e com a Venezuela, nos primeiros governos Lula, quando procurou ridicularizar os esforços brasileiros de construção da paz, a grande mídia comercial brasileira procura transformar a tentativa de mediação do conflito na Ucrânia em um alinhamento com a Rússia e em mais uma postura de hostilidade para com os EUA.

Qualquer escorregadela dada por Lula, mesmo que apenas no tom de suas palavras, tem sido crescentemente cobrada pela grande mídia comercial e amplificada pelos batalhões de robôs e militantes bolsonaristas ainda em operação nas redes sociais. 

 

O equilibrista e a consolidação da democracia e de um novo pacto social

Aparentemente serenados depois do 8 de janeiro, os agentes bolsonaristas continuam com atuação frenética nas redes sociais, atacando prioritariamente Lula e seu entorno, com o objetivo de espalhar a desconfiança e o pessimismo e instalar o medo. A divulgação de projeções de estagnação econômica e desemprego, pretensamente fundadas em estudos, e a disseminação de ameaças de bombas e atentados em locais públicos e até em escolas agem de maneira complementar. 

A CPMI dos atos de 8 de janeiro e a possibilidade de apresentar o governo Lula e seus ministros da área de defesa e segurança, da qual faz parte o general Gonçalves Dias, como responsáveis pela vandalização da sede dos três poderes é um importante passo na tentativa de desgastar o governo. 

À frente de um governo de coalizão, formado por uma frente ampla antifascista que se constituiu durante o segundo turno das eleições e que derrotou o adversário por uma estreita margem de votos, o governo Lula é composto por integrantes de diversos partidos com diferentes projetos políticos, econômicos e sociais, diferentes concepções de estado, direito, justiça e democracia. 

Excelente estrategista e negociador que é, Lula sabe que seu governo não é um governo petista ou de centro-esquerda. É um governo de reconstrução nacional, responsável por restabelecer a ordem democrática, com respeito à Constituição e às leis, com equilíbrio e independência dos poderes da República, com a garantia das liberdades individuais e respeito à diversidade. É também um governo que se comprometeu com um novo pacto social, capaz de incluir econômica e socialmente amplos seguimentos populares há muito excluídos. 

É nas políticas públicas necessárias à construção deste novo pacto social que habitam as grandes divergências e conflitos de interesses dentro do amplo bloco antifascista que elegeu Lula. Construir as soluções possíveis dentro deste bloco, a cada passo, e buscar o apoio de todas as forças políticas que não o apoiaram nas eleições, mas que são imprescindíveis para a aprovação das soluções, é o grande desafio. O desafio de um equilibrista.      

Exatamente por ser o excelente estrategista que é, Lula sabe que precisará agir com firmeza para evitar o risco de se tornar refém dos conservadores e, principalmente, de sofrer um golpe dos fascistas ainda incrustrados nas forças de defesa externa e de segurança interna, nos diferentes poderes da República, na grande mídia comercial, em diferentes segmentos da sociedade e do empresariado nacional e até mesmo em setores do seu próprio governo.

Lula sabe os riscos que corre. Sabe que além dele e do seu governo estão em risco também a democracia e a possibilidade de construção de um novo pacto social no país. Talvez por esse motivo ele se move com cautela, ainda que às vezes escorregue nas palavras, medindo as forças que tem e a velocidade e a intensidade de sua ação. Mais do que nunca, repetindo um bordão que utilizou desde o seu primeiro mandato presidencial, Lula sabe que não pode errar. Tomara que ele acerte, pois as tentativas de golpe fascista ainda estão em curso.


*Cientista político, professor aposentado da UFRGS e integrante das coordenações do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e da RED

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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