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Opinião

O futuro chegou depressa

O futuro chegou depressa

Artigo por RED
29/01/2023 17:06 • Atualizado em 31/01/2023 10:47
O futuro chegou depressa

De BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*

Dificilmente se encontrará na política internacional um começo tão turbulento de um mandato democrático como o que caracterizou o do presidente Lula. A democracia esteve por um fio e foi salva (por agora) devido a uma combinação contingente de fatores excepcionais: o talento de estadista do presidente, a atuação certa no momento certo de um ministro no lugar certo, Flávio Dino, logo secundado pelo apoio ativo do STF. As instituições especificamente encarregadas de defender a paz e a ordem pública estiveram ausentes, e algumas delas foram mesmo coniventes com a arruaça depredadora de bens públicos. Quando uma democracia prevalece nestas condições dá simultaneamente uma afirmação de força e de fraqueza. Mostra que tem mais ânimo para sobreviver do que para florescer. A verdade é que, a prazo, só sobreviverá se florescer e para isso são necessárias políticas com lógicas diferentes, suscetíveis de criarem conflitos entre si. E tudo tem de ser feito sob pressão. Ou seja, o futuro chegou depressa e com pressa.

O Brasil não volta a ser o que era antes de Bolsonaro, pelo menos durante alguns anos. O Brasil tinha duas feridas históricas mal curadas: o colonialismo português e a ditadura. A ferida do colonialismo estava mal curada porque nem a questão da terra nem a do racismo antinegro, anti-indígena e anticigano (as duas heranças malditas) foram solucionadas. A última só com o primeiro governo de Lula começou a ser enfrentada (ações afirmativas, etc). A ferida da ditadura estava mal curada devido ao pacto com os militares antidemocráticos na transição democrática de que resultou a não punição dos crimes cometidos pelos militares. Estas duas feridas explodiram com toda a purulência na figura de Bolsonaro. O pus misturou-se no sangue das relações sociais por via das redes sociais e aí vai ficar por muito tempo por ação de um lúmpen-capitalismo legal e ilegal, racial e sexista, que persiste na base da economia, uma base ressentida em relação ao topo da pirâmide, o capital financeiro, devido à usura deste. Esta ferida mal curada e agora mais exposta vai envenenar toda política democrática nos próximos anos. A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado, ora dormente ora ativo. Assim será até 2024, data das eleições norte-americanas, devido ao pacto de sangue entre a extrema-direita brasileira e a norte-americana.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro alterou profundamente as prioridades do presidente Lula. Dado o agravamento da crise social, a agenda de Lula estava destinada a privilegiar a área social. De repente, a política de segurança impôs-se com total urgência. Prevejo que ela vá continuar a ocupar a atenção do Presidente durante todo o tempo em que o subterrâneo golpista mostrar ter aliados nas Forças Armadas, nas forças de segurança e no capital antiamazônico. Este capital está apostado na destruição da amazônia e na solução final dos povos indígenas. A fotos dos Yanomanis que circularam no mundo só têm paralelo com as fotos das vítimas do holocausto nazista dos anos de 1940. Como poderia eu imaginar que, oito anos depois de dar as boas-vindas na Universidade de Coimbra aos lideres indígenas de Roraima (comitiva em que se integrava a agora Ministra Sônia Guajajara) e de receber deles o cocar e o bastão da chuva – uma grande honra para mim – assistiria à conversão do seu território, por cuja demarcação lutamos, num campo de concentração, um Auschwitz tropical? O Brasil precisa da cooperação internacional para obter a condenação internacional por genocídio do ex-presidente e alguns dos seus ministros, nomeadamente Sérgio Moro e Damares Alves.

Quando o futuro chega depressa faz exigências que frequentemente se atropelam. O drama midiático causado pela tentativa de golpe exige muita atenção e vigilância por parte dos dirigentes. Contudo, visto das populações marginalizadas a viver nas imensas periferias, o drama golpista é muito menor do que o de não poder dar comida aos filhos, ser assassinado pela polícia ou pelas milícias, ser estuprada pelo patrão ou assassinada pelo companheiro, ver a casa ser levada pela próxima enxurrada, sentir os tumores a crescer no corpo por excessiva exposição a inseticidas e pesticidas, mundialmente proibidos mas usados livremente no Brasil, ver a água do rio onde sempre se buscou o alimento contaminada ao ponto de os peixes serem veneno vivo, saber que o seu jovem filho negro ficará preso por tempo indefinido apesar de nunca ter sido condenado, temer que que o seu assentamento seja amanhã vandalizado por criminosos escoltados pela polícia. Estes são alguns dos dramas das populações que no futuro próximo, responderão às sondagens sobre a taxa de aprovação do Presidente Lula e seu governo. Quanto mais baixa for essa taxa mais champanhe será consumida pelos golpistas e pelas lideranças fascistas nacionais e estrangeiras. Confiemos no gênio político do presidente Lula, que sempre viveu intensamente estes dramas da população vulnerabilizada, para governar com uma mão pesada para conter e punir os golpistas presentes e futuros e para com uma mão solidária, amparar e devolver a esperança ao seu povo de sempre.

Ao longo do século XX, os movimentos de libertação contra o colonialismo europeu e as lutas sociais contra o racismo conduziram à enorme expansão de estudos interdisciplinares pós-coloniais/descoloniais, que resultou em uma multiplicidade labiríntica de designações. Na primeira parte dessa obra Boaventura apresenta as diferenças teóricas entre essas denominações e segue com a apresentação de tarefas primordiais para o Brasil, assumidas por diferentes grupos sociais. Destaque para o fim da expropriação de terras indígenas, reforma agrária e trabalho com direitos, fim do sexismo enquanto degradação ontológica gêmea do racismo e mudança da condição de vítima dos grupos marginalizados à de resistente, e da condição de resistente à condição de protagonista da sua história.


*Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. Pela Boitempo, publicou Descolonizar: abrindo a história do presente (2022), A cruel pedagogia do vírus (2021), O futuro começa agora: da pandemia à utopia (2021), Esquerdas do mundo, uni-vos! (2018), A difícil democracia: reinventar as esquerdas (2016) e Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social (2007).

Artigo publicado originalmente no Blog da Boitempo.

Foto: Ricardo Stuckert.

As opiniões contidas nos materiais expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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