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Opinião

O fim de um grande repórter

O fim de um grande repórter

Geral por RED
15/01/2023 18:23 • Atualizado em 16/01/2023 19:39
O fim de um grande repórter

DE NÚBIA SILVEIRA*

Quando entrei no Jornalismo, no início de 1968, Carlos Fehlberg já era uma espécie de lenda entre os colegas. Formado em Medicina, porque a mãe queria que o filho fosse médico, nunca exerceu a profissão. Dedicou-se totalmente à comunicação. Foi um excelente repórter de política. Conheci-o em alguma coletiva que dividimos com outros colegas. Eu, repórter do Diário de Notícias. Ele, da sucursal do Jornal do Brasil. Não lembro exatamente como foi este primeiro contato.

Amigos comuns, que haviam trabalhado com ele na Última Hora, costumavam  lembrar-se das histórias do Fehlberg, um repórter bem informado e que não media esforços para conseguir uma informação.  Escondia-se atrás de armários e cortinas para acompanhar reuniões políticas fechadas à imprensa, o que lhe valia bons furos (notícias exclusivas). No tempo da Última Hora também trabalhava no jornal católico, o Jornal do Dia, publicado pela Diocese de Porto Alegre.

Ao ser designado presidente da República, o general Emílio Garrastazu Médici, convidou o repórter gaúcho a assumir a sua assessoria de imprensa. Fehlberg não gostou muito da ideia. Mas as direções do Jornal do Brasil e Zero Hora exerceram pressão para que ele assumisse o cargo em Brasília. Foi o que fez. Lembro-me bem de uma visita de Médici a sua terra natal, Bagé. Não sei mais por que, repórteres, fotógrafos e cinegrafistas resolveram fazer um protesto. Os da canetinha  colocaram blocos e canetas no chão. Os das imagens, câmeras. Tenho gravado nitidamente na minha memória a figura do Fehlberg indo em nossa direção negociar o fim da “paralisação”. Demorou um pouco, mas ele se mostrou um bom  negociador e teve sucesso na sua missão.

Iniciei uma ótima relação de trabalho com ele no início dos anos 1970, quando o nosso amigo Carlos Bastos, diretor do Departamento de Jornalismo da TV Gaúcha, hoje RBS TV, nos convidou para integrar a equipe do telejornal que iria ao ar à noite. Eu seria editora e o Fehlberg, comentarista político. No contato diário, fomos sedimentando a amizade, baseada no respeito, admiração e confiança mútuas.

Fehlberg chegava à televisão em cima do laço, quando estávamos enlouquecidos fechando o roteiro, que teria de ser impresso em várias cópias num mimeógrafo a álcool. Entrava rapidamente na redação, arrastando os pés, como sempre fez. Queria atenção. Repassar o texto comigo, saber a minha opinião. Eu correndo para um lado e ele me puxando para o outro. Sempre foi uma pessoa focada nas informações. Era o último a entrar no estúdio e o assistente passava trabalho para colocar o microfone na lapela do seu caso. Naquela época o microfone ficava ligado a um fio, que se estendia pelo estúdio afora.

Fehlberg também era uma pessoa inquieta. Não conseguia ficar  parado. Mexia-se e prejudicava o áudio. Todas as noites, eu pedia que o assistente ficasse por perto dele para evitar que o microfone saísse do lugar. Quando ele terminava o comentário, simplesmente levantava da cadeira, já pensando em voltar para a Zero Hora, onde era secretário de redação. Saía levando o assento, o longo fio e o microfone. Uma balbúrdia. A cena se repetia a cada noite.

Anos depois, no início dos anos 1980, ele me convidou para assumir a editoria de geral da Zero Hora. Levou-me para conversar com Lauro Schirmer, diretor do jornal, de quem fiquei muito amiga. Em ZH conheci outras facetas do Fehlberg: atravessava a redação quase correndo, sem ver o que tinha na frente, pensando em como dar um furo no concorrente, o Correio do Povo. Comprava algo para comer – bolo, pão de queijo, sanduíche – que coubesse no bolso do casaco. Assim, andava de um lado ao outro, beliscando o que tinha no bolso para comer.

Em Zero Hora, descobri que ele era um ótimo médico, apesar de nunca ter se dedicado à Medicina. Conhecia todos os remédios de última geração para qualquer doença (era hipocondríaco). Os colegas preferiam consultá-lo quando sentiam algum sintoma, fosse qual fosse. Fehlberg sempre acertava na receita. Nenhum de seus “pacientes” reclamou do doutor.

Quando fechava a porta de sua sala, era certo que estava conchavando. Tinha prazer em ligar para suas fontes e saber, antes mesmo dos repórteres de política, os bastidores das chamadas e manchetes. Atrás dele, havia uma parede branca (acho que de Eucatex ou qualquer outro material da mesma família).  Ali ele anotava os telefones das novas fontes. Ia falando ao telefone enquanto transformava a parede na sua agenda. Um início de tarde, quando chegou para trabalhar, Fehlberg se deu conta que não tinha mais agenda. Uma das funcionárias da limpeza havia limpado bem a parede que estava suja.

As histórias eram muitas. Nos separamos quando fui traballhar em Brasília e nos reencontramos em Florianópolis no Diário Catarinense, já nos anos 1990. Dividíamos o amor pelo Jornalismo, a política e o cinema. Muitas vezes, na madrugada, ao sair do jornal, fomos para minha casa comer algo e ver um filme que nos interessava.

Discreto e fiel aos seus patrões, Fehlberg nunca falou dos bastidores da política durante o governo Médici. Cobrávamos dele um livro sobre a sua experiência jornalística e os fatos políticos regionais e nacionais, que ele  acompanhou por muitos anos. Pelo que soube – nos separamos, novamente, em 1996, quando voltei para Porto Alegre e só falamos uma vez ou outra por telefone – ele começou a escrever já no final da vida. Não conseguiu concluir. Perdemos grandes histórias e um grande profissional, um homem com acertos e erros, como todos nós. Vai em paz, Fehlberg. Poderás fazer um grande jornal onde estiveres, ao lado de amigos  como João Souza, Divino Fonseca, Eunice Jacques, Bella Hammes e tantos outros. Nos veremos.

 


*Núbia Silveira é jornalista, trabalhou em jornal, TV e assessoria de imprensa, em Porto Alegre, Brasília e Florianópolis. Foi repórter, editora e secretária de redação. É coordenadora do programa Espaço Plural da RED – Rede Estação Democracia.

Foto: Estela Benetti/Arquivo pessoal

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