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O esquema de orçamento secreto não é um mero desvio moral de um indivíduo corrupto, autoritário e sem escrúpulos, como Arthur Lira.
O esquema de orçamento secreto não é um mero desvio moral de um indivíduo corrupto, autoritário e sem escrúpulos, como Arthur Lira.
Por DAVI DECCACHE*
É evidente que Lira desempenha um papel central na condução desse mecanismo, mas reduzir o problema ao desvio moral de uma figura individual é ignorar a essência estrutural e política do esquema. O orçamento secreto é uma manifestação do caráter autoritário e corrupto de um projeto neoliberal, sustentado por um movimento mais amplo do capital em sua especificidade neoliberal, que exige retrocessos sociais e econômicos para atender às suas necessidades de reprodução e expansão.
Nesse contexto, as classes políticas que assumem o papel de gerentes desse processo, seja no Executivo ou no Legislativo, inevitavelmente se tornam também gestoras desses esquemas, funcionando como engrenagens para a concretização dos interesses do capital.
Muitos, inclusive na esquerda, afirmam que a corrupção e os desvios de dinheiro público são o que permitem a imposição da austeridade fiscal. Essa é uma visão de caráter liberal e antimarxista, que confunde essência e aparência. A austeridade não é uma consequência da corrupção; ela é a essência do projeto neoliberal, e implica, invariavelmente, em esquemas de corrupção e espoliação. Esquemas como o orçamento secreto são instrumentos inevitáveis dentro desse modelo, porque viabilizam os ataques necessários para desmontar direitos e serviços públicos.
Sempre haverá indivíduos imorais e desonestos – como Arthur Lira – dispostos a conduzir esses esquemas, operando como funcionários do capital que, em troca de benefícios privados, viabilizam os retrocessos e ataques ao povo.
Políticas neoliberais dependem da austeridade como instrumento central para desmontar a capacidade do Estado de manter serviços públicos e direitos sociais, visando à mercantilização – por meio de privatizações, concessões, parcerias público-privadas e outros mecanismos – do que deveria ser um direito básico garantido à população. A austeridade não é um mero efeito colateral ou uma consequência indesejada, mas o objetivo central do neoliberalismo, que, para ser implementado, exige constantes ataques aos direitos da classe trabalhadora e ao sistema de proteção social.
Nesse sentido, as políticas de austeridade foram o ventre do orçamento secreto por duas vias principais.
Primeiro, porque regras fiscais extremamente rígidas, como tetos de gastos e metas de superávit, não apenas legitimam ataques a direitos sociais, mas os tornam matematicamente inevitáveis. Essas regras, propositalmente desenhadas para engessar o orçamento público, criam a necessidade de cortes impopulares em áreas como saúde, educação, previdência e assistência social. Para viabilizar esses ataques, as classes políticas que ocupam o executivo precisam negociar com o Congresso, cujo custo político é alto, pois até mesmo deputados do corrupto Centrão sabem que votar contra os interesses mais essenciais do povo pode resultar em cobranças dos eleitores. Assim, cobram caro por seu apoio, utilizando o orçamento secreto como moeda de troca.
Segundo, porque essas mesmas regras fiscais de austeridade demandam furos e manobras frequentes para lidar com suas próprias limitações. Essas flexibilizações, muitas vezes feitas em períodos eleitorais para garantir recuos táticos que beneficiem o governo de ocasião, tornam-se oportunidades para o Legislativo negociar mais emendas secretas, fortalecendo o esquema.
Dessa forma, o orçamento secreto não é um acidente de percurso, mas uma engrenagem essencial para sustentar a austeridade e viabilizar a reprodução do capital em um sistema neoliberal que exige cortes, privatizações e mercantilização de serviços básicos.
Acredito que certas coisas precisam ser ditas, mesmo que o custo seja altíssimo. O esquema das emendas de orçamento secreto, transformado em um grande mecanismo de desvio de dinheiro público, foi usado para ‘comprar’ o Congresso e viabilizar ataques diretos ao salário-mínimo, ao BPC (benefício pago a idosos e pessoas com deficiência em situação de extrema pobreza), ao Abono Salarial de trabalhadores que recebem até dois salários-mínimos, ao serviço público e aos servidores, entre outros.
Infelizmente, os projetos de lei de austeridade, que compõem o pacote recém-aprovado no parlamento, são de autoria do Executivo, que recorreu às emendas parlamentares como moeda de troca para assegurar sua aprovação. Essas medidas, intrínsecas ao modelo neoliberal, foram implementadas por meio de negociações com o Legislativo, evidenciando a dependência estrutural de esquemas como o orçamento secreto para viabilizar ataques impopulares aos direitos sociais e ao serviço público.
Em troca dessa “compra”, o Congresso atropelou a democracia. Por meio de um movimento autoritário, suspendeu o devido processo legislativo e eliminou a participação popular em decisões que afetam profundamente as gerações presentes e futuras. Sem tramitar pelas comissões, sem audiências públicas, sem responder a requerimentos de informação, sem qualquer avaliação de impacto social e sem ouvir a academia, movimentos sociais, militantes e técnicos, o Congresso executou um golpe.
Esse golpe foi consolidado ao “colar” o texto da PEC 45 de 2024 – que não passou pelas discussões nas comissões, instâncias essenciais para a análise técnica e política de alterações constitucionais – em uma PEC de 2007, que tratava de um tema totalmente distinto e já estava pronta para votação. Além disso, foi reforçado pela aprovação de inconstitucionais regimes de urgência, que não cumpriam os requisitos necessários e que, dado o caráter estrutural das propostas, deveriam obrigatoriamente tramitar nas comissões.
O processo foi formalizado quando 17 líderes de bancadas partidárias encaminharam um ofício à Casa Civil do governo federal, oficializando o acordo. Essa dinâmica evidencia como medidas neoliberais, sejam sob governos que se apresentam como “progressistas”, sejam sob regimes abertamente autoritários de extrema-direita, são invariavelmente autoritárias. O neoliberalismo não tolera que a democracia interfira no seu objetivo de mercantilizar todas as esferas da vida e comprometer o futuro coletivo.
Ignorar a motivação estrutural desse esquema é cientificamente e politicamente equivocado. Como militante e economista que estuda e trabalha com política fiscal, sinto-me na obrigação de me posicionar diante dessa situação. Reduzir o golpe orquestrado por Arthur Lira a uma questão de imoralidade individual é insuficiente e contribui para obscurecer o caráter sistêmico do problema, além de limitar a compreensão da classe trabalhadora sobre suas raízes estruturais.
O orçamento secreto, fortalecido desde o governo Bolsonaro, foi mantido e segue funcionando para que o governo federal – seja ele qual for – pague ao Congresso em troca de ataques aos direitos do povo, a serviço dos interesses da Faria Lima. A política econômica neoliberal, por sua natureza, é autoritária e extremamente impopular. Para ser aprovada, recorre a esquemas como o que vimos Lira gerenciar. Algumas medidas são tão prejudiciais à população que até mesmo os deputados do corrupto Centrão sabem que, se votarem a favor, serão cobrados por seus eleitores. Por isso, exigem um alto preço para executar esses ataques.
O golpe que presenciamos é a manifestação do que ocorre quando a democracia é subordinada ao capital e transformada em uma mercadoria, cujo preço se traduz no orçamento secreto: decisões são tomadas nas sombras, prejudicando o povo e favorecendo exclusivamente uma elite econômica.
*Davi Deccache é doutor em economia pela UnB e assessor técnico na Câmara dos Deputados do Brasil.
Ilustração da capa: Redes sociais
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