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Opinião

O certo na vida errada

O certo na vida errada

Artigo por RED
23/08/2023 05:30 • Atualizado em 25/08/2023 10:13
O certo na vida errada

De ALFREDO FEDRIZZI*

Eles atuam em quatro continentes – América Latina, África, Europa e Oriente Médio – e atuam em inúmeros ramos de negócios. No Brasil, a força de trabalho direta é de 30 mil pessoas, espalhadas por todos os estados. Possuem uma rede de apoio estimada em mais de um milhão de pessoas. E tem outros dois milhões de homens, mulheres e adolescentes em cada cidade, cada bairro, cada esquina, fornecendo informações e dando apoio a cada operação. Funcionam de maneira completamente descentralizada. Cada célula tem grande autonomia.

É impossível desenhar seu organograma. Recusam-se a ter uma estrutura centralizada como uma empresa ou uma organização militar. Não existe só um líder. Todos os quadros são rotativos. Pensam em rede, como uma irmandade secreta. Para eles a conduta é o que importa. Agir com humildade e recusar-se a ser mais do que qualquer um dos seus pares é o certo. Tratam-se como irmãos. Quem ocupa posições consideradas de liderança, sente-se servindo aos demais e não sendo servido por eles. A liderança não dá ordens, mas ouve o que dizem aqueles que representa. Debatem problemas – “papo reto”- e cuidam da ordem em cada região. Praticamente todos têm um grau de informação e de responsabilidade sobre as posições político-administrativas, que são milhares. Mas um não tem acesso à parte do outro.

Por incrível que pareça, não estou falando de uma grande empresa moderna e bem estruturada. Estou falando do PCC/Primeiro Comando da Capital, a maior organização criminosa do Brasil, que nasceu na cadeia em 1993, um ano depois do massacre de Carandiru. Segundo um de seus líderes, o objetivo é praticar “o certo na vida errada”.

Tudo o que relatei acima está no livro Irmãos – uma história do P.C.C, do sociólogo Gabriel Feltran (Cia das Letras), resultado de mais de 20 anos de pesquisa sobre a trajetória da organização que impacta o Brasil.

Mostra como eles se profissionalizaram e expandiram. Marcola, um dos maiores líderes, definiu assim o PCC: “Presos apoiam presos, marginais na rua apoiam os marginais na rua e assim vai. É uma luta justa dos miseráveis contra os poderes estabelecidos, que não permitem ter nenhum tipo de melhora na vida. A gente vai ser sempre bandido. Não tem jeito”.

Fazem negócios legais – automóveis, seguros, fazendas, comércio, imóveis, leilões, entre tantos outros. E ilegais – drogas, armas, desmanches, roubo de carros, de bancos, mansões, condomínios e de caixas eletrônicos. Não se organizam como grupos criminosos já conhecidos, que ocupam territórios, gostam da exposição na mídia, onde aparecem muito bem armados. O PCC é bem mais discreto. Garante a segurança aos que fazem “negócios”. Não competem entre si. Trabalham com alianças e parcerias. Cada um no seu espaço, mas com princípios comuns de atuação. Parece uma sociedade fraternal, que admite todos que sigam sua disciplina, sem distinção de raça, religião, ideário político ou posição social. Na visão dos integrantes o objetivo da sociedade é o progresso dos “irmãos”. As ações criminais são o meio para esse progresso.

As ideias do PCC se alimentam da experiência marginal: “Uns terem tanto, outros tão pouco e os que menos têm são perseguidos”. Recrutam seus membros pelas ruas das periferias das cidades – gente que sofre com a miséria e a falta de perspectivas de vida. Profissionalizam seus quadros dentro dos presídios. Transformaram-se em outra forma de governo dos marginais urbanos.

É curioso que uma organização criminosa incorpore princípios e práticas avançadas: autogestão, distribuição do poder, liderança não personalista, igualdade no tratamento das pessoas, foco no cliente interno e externo.

O mundo do crime, infelizmente, passou a fazer parte da periferia urbana. Tem legitimidade social, pelo que faz para os seus e as comunidades onde atua. Se tornaram uma instância de poder nos bairros pobres. Geram renda. Impactam a vida de todos.

A leitura do livro é inquietante.

Perceber que essa organização, praticando crimes, consegue atuar gerando melhores condições de vida para os pobres da periferia, coisa que o estado não está conseguindo fazer, é aterrorizante.

Os presídios tornaram-se escolas de aperfeiçoamento do crime. Essa política de encarceramento em massa, o uso da violência policial, desrespeito, exploração, falta de perspectivas é o grande mercado de crescimento do crime. O resultado disso é o crescimento da violência.

Merece ser observado o impulso empreendedor que existe nas periferias. Muitos movimentos inovadores, como hip-hop, rap, pichadores (que viraram grafiteiros), inicialmente criminalizados, depois se transformaram em enorme sucesso, gerando trabalho renda. É preciso olhar, sem preconceitos, em que partes da sociedade existem saberes. Como saber reconhecer nas favelas, nos presídios, nas ruas, as pessoas que tem saberes inovadores? Muita gente quer mais do que um emprego com um salário mínimo. Buscam dignidade e oportunidades de crescimento.

O que a gestão do PCC deixa claro é que para criar um espírito de comunidade precisamos, enquanto sociedade, reduzir a desigualdade, criar oportunidades, escutar e ajudar as pessoas humildes das periferias a prosperarem. Assim teremos alguma chance de reduzir o mercado do crime. Enfim, já temos o caminho para fazer o certo, na vida certa!


*Jornalista, publicitário e consultor de transformação de negócios e aceleração digital.

Imagem em Pixabay.

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