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O CAMINHO PARA UM NOVO MODELO DE SOCIEDADE
O CAMINHO PARA UM NOVO MODELO DE SOCIEDADE
Por J. CARLOS DE ASSIS*
O Capitalismo fracassou como instrumento econômico de organização de uma sociedade justa. Na forma que assumiu pela exploração extrema da classe trabalhadora e pela exaustão do meio ambiente, mediante mecanismos de concentração de renda e de agressão à Natureza em busca do lucro ilimitado, jamais encontrados no passado distante, passou, na medida em que se expandia, ao largo das inequívocas conquistas que trouxe para a Humanidade em seus primórdios na forma de aumento de produtividade, de concorrência via qualidade dos produtos (e não pela força política dos monopólios e oligopólios), e pelo desenvolvimento científico e tecnológico.
Por outro lado, também o Socialismo idealista fracassou na prática. Foi um sonho político que não ofereceu resultados materiais comparáveis aos do Capitalismo, tendo sigo igualmente predatório da Natureza, tanto quanto ele. Também não ofereceu as formas de solidariedade humana imaginadas por seus criadores, a partir do próprio Marx. É no exemplo chinês que esses dois sistemas se encontraram para produzir uma síntese material parcialmente vitoriosa. É que também esta está privada de um elemento fundamental para atender a todas as necessidades humanas: falta-lhe a democracia política, e a liberdade individual em seu sentido completo.
Uma síntese objetiva para que esses dois sistemas sejam superados requer sua evolução para a frente, e não sua volta para traz. É o que anteciparam, cada um a seu modo, os dois maiores filósofos do século XIX, o idealista Friedrich Hegel e o materialista Karl Marx. Segundo eles, a história evolui dialeticamente de acordo com o conflito entre forças econômicas e sociais opostas, que, quando atingem extremos, se esgotam individualmente e realizam a síntese num nível superior a ambas. É o que assistimos hoje, quando forças sociais e políticas antagônicas estão atingindo níveis extremos de radicalização em todo o mundo, exigindo uma síntese.
No Brasil, o grande conflito histórico no século XIX opôs as oligarquias rurais que mantinham o controle de um Estado descentralizado e fraco às emergentes forças capitalistas que aspiravam à modernidade, a qual só poderia ser conquistada com a derrota dos conservadores. Isso, como visto em artigo anterior, ocorreu ainda na Revolução de 30, quando Getúlio Vargas assumiu o poder e lançou as bases de um Estado centralizado, que derrotou o Estado descentralizado e fraco das oligarquias agrárias, e ampliou o terreno para o desenvolvimento capitalista no País.
Esse movimento só se esgotou no fim do século passado e no início do atual, na medida em que o Capital industrial viu enfraquecida sua força produtiva com a perda de suporte na economia real, principalmente com a queda da demanda efetiva e da alta taxa de juros, em favor do setor financeiro especulativo e hipertrofiado. Com ele, enfraqueceu-se também o Trabalho, atingido especialmente pelo alto desemprego provocado pela evolução tecnológica da indústria, assim como pelo subemprego, levando à piora nas condições de vida do trabalhador em geral. Diante do esgotamento de ambos, como se dará a síntese em nível superior?
Dizia Marx que nenhuma sociedade avança historicamente se o que é velho nela não estiver completamente esgotado, e o que é novo não estiver preparado para assumir seu lugar. Pode parecer prematuro, mas já podemos identificar a existência entre nós de células embrionárias de uma síntese histórica entre Capital e Trabalho, com o que existe ou existiu de melhor em ambos, nascida de movimentos espontâneos da Sociedade, acima de ideologias, conhecido como Arranjos Produtivos Locais (APLs).
Os APLs são organizações sócio-econômicas de base, similares a cooperativas, mas que diferem dessas últimas por obedecerem às regras das Sociedades Anônimas capitalistas. Eles podem aceitar, como acionistas, além dos trabalhadores que participam deles com seu trabalho, ou, no caso agrícola, com suas safras, membros da Sociedade que queiram entrar como investidores. O objetivo é que superem a principal característica do Capital, que é seu controle sobre muitos trabalhadores, pelo controle inverso do Capital por muitos trabalhadores em forma associativa. Chamamos esse sistema, à falta de nome melhor, de sociocapitalismo.
Segundo informações do Ministério da Economia, há no Brasil 839 Arranjos Produtivos Locais em 2.580 municípios, em todas as regiões do País; são 40 setores produtivos com 3.058.244 empregos gerados. Naturalmente, dada sua quantidade e espalhamento, presume-se que têm baixos recursos tecnológicos para se desenvolverem e aproveitar todas as oportunidades que oferecem. Acreditamos, assim, que é fundamental um programa abrangente do Governo para atualizar tecnologicamente e expandir o número deles no Brasil.
Para aproveitar todas os recursos do Arranjo em termos de produtividade e eficiência, deve-se usar, atrelada ao sistema físico de produção, o sistema digital blockchain token*, que, no caso agrícola, permite acompanhar todas as etapas do sistema produtivo, em tempo real, desde a compra de sementes e a semeadura, até o momento da comercialização. Assim, os produtores têm absoluto controle sobre os resultados de seu trabalho, mesmo nas etapas intermediárias, sem os custos de manipulação de preços que intermediários costumam impor na etapa de comercialização, antecipando ou retardando arbitrariamente a venda das safras.
Esse método assegura também aos produtores maior lucratividade e menores custos. É que, tendo em vista a melhor organização do sistema produtivo físico e o menor tempo de realização do trabalho, ele permite que a plataforma virtual indique, a qualquer momento, a eventual necessidade intervenção no processo produtivo físico, o que acontece com grande frequência na agricultura, e, especialmente, em tempos de mudanças climáticas.
A tragédia no Sul deixou mais de 100 mortos e dezenas de milhares de trabalhadores desabrigados ou desalojados, e incêndios têm ocorrido em 62% do território nacional, em todos os biomas, exigindo do Governo iniciativas para a prevenção de novas tragédias, que sabemos que continuarão ocorrendo. A organização nos municípios de APLs digitalizados possibilitaria àqueles que queiram buscar residências em locais onde não ficarão expostos a novos desastres a retomada de suas atividades normais de forma cooperativa, e com apoio dos três níveis governamentais, como tem ocorrido de forma individual.
Assim, seria importante buscar, fora das áreas de risco, lugares identificados pelos municípios e os estados onde pequenos e médios agricultores fossem orientados por consultorias especializadas a organizar os APLs. Na prática, o Governo pode recrutar, contando com a solidariedade da Sociedade Civil e a ajuda dos próprios desabrigados, voluntários que possam fazer busca ativa de micro, pequenos e médios agricultores e empresários para a organização dos Arranjos. Seus integrantes atingidos pelas tragédias, naturalmente, devem receber ajuda humanitária do Governo para reconstruir suas moradias nos locais seguros dos APLs.
A partir do Rio Grande do Sul e considerando as dramáticas consequências das queimadas nas áreas urbanas e rurais do resto do País, pode-se lançar um programa acelerado de expansão e desenvolvimento de APLs, inclusive urbanos, com o objetivo não só de tornar o Brasil um grande produtor de produtos alimentares, para extinguir a fome, mas também para produção de bens de consumo popular de baixo custo, por exemplo, reunindo neles pequenos e médios produtores de roupas, sapatos, mobiliário de casas, etc. Nesse caso, como sempre depois das tragédias aumenta a demanda para reposição dos bens destruídos nelas, esse impulso produtivo, se a baixo custo de juros, seria uma forma concreta de combater os riscos de inflação.
O modelo de organização (ou reorganização) de APLs é simples. Basta que líderes comunitários influentes convoquem outros membros da sociedade local para criarem um empreendimento similar a uma Sociedade Anônima, sujeita a todo os requisitos materiais e legais dessa última: determinação da área de menor risco a ser ocupada; eleição do Presidente e da Diretoria por uma Assembleia Geral de Sócios, que indica a Diretoria Executiva; e realização, duas vezes por ano, da Assembleia Geral, a fim de determinar as estratégias gerais do empreendimento.
Presidente e Diretoria não podem ter mandatos sucessivos por mais de dois anos. As ações com direito a voto dos sócios, representadas por terra, direitos legalmente comprovados de sua ocupação, compromissos de entrega de safras e investimentos diretos, uma vez monetizados, devem ser limitadas a 10% do capital total, para evitar tentativas de controle do empreendimento por um grupo que busque se tornar majoritário, com risco de desvio de sua finalidade.
Cada APL funciona como Central de Armazenamento de Produtos e Equipamentos de Produção para Atendimento das demandas dos sócios, disponibilizados para uso individual a baixo custo, como os de tratores e outros equipamentos agrícolas. Para isso, o Arranjo deverá dotar-se preliminarmente dos produtos e equipamentos necessários a seu funcionamento, comprados coletivamente e disponibilizados individualmente aos sócios, na forma de aluguel, e operados por trabalhadores próprios ou contratados. Um centro Agroindustrial deve ser articulado a cada APL, a fim de processar e comercializar, sem intermediários, os produtos primários nele colhidos.
Esses requisitos formarão a base de operação do APL, e definirão o valor do capital a ser requerido para o investimento na sua organização (ou reorganização, no caso dos já existentes a serem modernizados). Os quotistas, como já observado, terão a opção de investirem em dinheiro ou em compromissos de entrega de sua produção, em prazo definido. O conjunto das provas de direito de propriedade ou de posse continuada de terras, como estabelecido em lei, constituirá a garantia para os financiamentos bancários de cada Arranjo. O lucro individual do participante pode ser calculado e retirado em etapas, ou no final de cada ciclo produtivo e de comercialização, conforme indicado pela Plataforma Digital.
Em resumo, a grande vantagem econômica do APL digitalizado sobre as cooperativas convencionais é o acompanhamento de seu processo produtivo em etapas, e em tempo real, possibilitando, com a força do trabalho social integrada, o aumento da produtividade e da produção, e a rápida correção de rumos da atividade quando surge uma necessidade disso. Outra vantagem, já assinalada, é a eliminação de intermediários na venda da produção, que pode ser estimada diretamente pelos produtores com segurança e preceder a comercialização com grandes cadeias de compradores por atacado, como hotéis, supermercados, restaurantes etc., reduzindo custos, por um lado, e aumentando as margens de lucro, por outro, permitindo, ao mesmo tempo, a redução dos preços para os consumidores finais.
Os APLs não são apenas centros produtivos. Podem ser também centros de prestação de serviços públicos, como saúde, educação, saneamento básico, logística, e centros animadores de atividades sociais nas comunidades, promovendo cultura, esportes, atividades lúdicas etc. É claro que, para isso, sua liderança deve atuar com espírito de empreendedorismo, buscando usar os resultados econômicos do próprio APL e o apoio de setores privados e públicos federais, estaduais e municipais, através de financiamentos, para promover suas iniciativas sociais.
Os Arranjos devem ser integrados em redes através da informática, sendo articulados aos órgãos de Governo para o acompanhamento de sua produção coletiva. Com isso, na medida em que se expandam pelo País, podem dar uma contribuição expressiva ao planejamento da produção nacional, permitindo aos Ministérios da Agricultura e do Planejamento estimar, em tempo real, as necessidades de insumos necessários para a produção a ser alcançada e os resultados das colheitas, assim como, pela consulta a decisões dos produtores, sua destinação ao mercado interno ou às exportações.
A organização de um número crescente de APLs em tempos de desastres climáticos constitui uma importante medida de prevenção contra tragédias humanitárias, a exemplo das que ocorreram no Rio Grande do Sul e das queimadas que continuam ocorrendo em várias partes do País. Estima-se que, mesmo se realizadas ações preventivas, principalmente as enchentes catastróficas indicarão áreas de risco permanente, afetando a habitação humana e atividades econômicas. Com isso, parte da população poderá querer se afastar permanentemente dessas áreas e poderá ser deslocadas para regiões seguras onde possam ser organizados APLs.
O Governo deve recorrer às mídias para realizar propaganda intensiva de organização de APLs e facilitar seu financiamento por parte de bancos públicos e privados, com apoio dos financiamentos do Plano Safra, cujas prioridades já estão sendo deslocadas, com acerto, do agronegócio para a agricultura familiar. A iniciativa privada deve acompanhar esse esforço governamental, considerando, inclusive, que a atividade agrícola tem alta lucratividade, mesmo sem muitos recursos tecnológicos, sendo prejudicada sobretudo pela ação dos intermediários e especuladores. Estes, no caso dos Arranjos informatizados, não terão oportunidade de atuar.
Finalmente, sugere-se que os APLs sejam organizados em redes intermunicipais e interestaduais, seguindo os cursos dos rios, que não têm fronteiras políticas entre si assim como os consórcios estaduais e municipais já previstos em lei. Isso facilitará sua atuação coletiva na reconstrução de patrimônio público e privado atingido por grandes enchentes e alagamentos nos desastres climáticos, assim como a prevenção de futuros desastres, mediante a realização de obras de interesse comum, especialmente de saneamento básico e de reflorestamento de margens de rios e lagoas.
Vê-se que o APL não é apenas um processo produtivo que integra Capital e Trabalho num nível superior de organização. Na verdade, pode tornar-se, na medida em que se expanda pelo País, o embrião da organização de uma Nova Sociedade, com alta capacidade produtiva e, ao mesmo tempo, de promoção da solidariedade entre os trabalhadores e o conjunto dos cidadãos. Nesse sentido, é a síntese dos dois sistemas econômico-sociais que herdamos dos séculos XIX e XX, com suas contradições e extremismos, os quais, degenerados, nos estão empurrando para uma guerra nuclear catastrófica e para a inércia do Capital poluidor, indiferente às ameaças dos desastres climáticos extremos.
*Tecnologia
O Programa de APLs deverá se utilizar do mais moderno instrumento de acompanhamento de gestão de projetos e programas dos setores público e privado, que vem sendo aplicado no Brasil com grande eficácia em ambos os setores. Trata-se da tecnologia blockchain/token. Em essência, consiste em reunir, numa mesma plataforma físico-financeira formada por etapas de seu processo de desenvolvimento, e sob controle comum, todas as etapas de um projeto ou programa específicos.
A plataforma físico-financeira, no caso do Governo, elaborada pelo Ministério do Planejamento com os dados originários dos Ministérios-fins, constitui um meio de acompanhamento da execução orçamentária e de cada etapa do projeto ou obra físicos, por cada Ministério individualmente, ou pelo Governo em seu conjunto, mediante sua replicação na plataforma digital. É que, como esse acompanhamento seria muito pouco prático em campo, a informática possibilitaria a avaliação dos empreendimentos governamentais ou privados, em tempo real, por etapas e com sua totalização final, a qualquer momento.
Com isso, simplesmente operando um token, qualquer gestor, desde que tenha a devida senha, pode acompanhar cada etapa do projeto até sua totalização. É, pois, um instrumento para que o próprio Presidente da República tenha, permanentemente, em tempo real, uma visão completa do desenvolvimento de seu Governo. Essa tecnologia torna ainda mais fácil a governança. Por exemplo, se o Presidente quiser, poderá acompanhar em tempo real, com o auxílio de um drone que sobrevoe um incêndio no Pantanal, o andamento passo a passo do trabalho dos brigadistas.
*Jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor de Economia Política aposentado da UEPb.
Foto: © Tânia Rêgo /Agência Brasil
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