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O Brasil de Grande Otelo
O Brasil de Grande Otelo
Por LÉA AARÃO REIS*
Vencedor do Prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio do ano passado, Othelo, O Grande, em cartaz nos cinemas esta semana, tem como base uma extensa entrevista do ator Grande Otelo, já idoso. Suas impressões são entremeadas por imagens de preciosos documentos de telejornais, trechos de filmes nacionais e episódios históricos do show business brasileiro, nos idos dos anos dourados extensivos a poucas décadas atrás. O excelente filme é dirigido por Lucas H. Rossi dos Santos e produzido por Ailton Franco Jr., e conta com mais de 300 horas de material biográfico com as inúmeras faces de Otelo. A narração, pode-se dizer, é do próprio Otelo.
Como escreveu o crítico Carlos Alberto Mattos, trata-se de uma produção que vem a ser um bom retrato da nossa brasilidade. Mostra Grande Otelo vivendo e trabalhando em um universo intoxicado pelo racismo institucional, muito mais agressivo do que hoje, durante oito décadas, duas ditaduras e mais de cem filmes.
“Trabalhei com Josephine Baker no Cassino da Urca, do Joaquim Rolla, mas entrava no prédio pela porta dos fundos como qualquer negro, embora já fosse uma figura conhecida. Negro não podia entrar pela porta da frente de teatros e cassinos”, ele recorda. Acrescentamos: nem em elevadores ditos sociais de prédios residenciais do Rio de Janeiro.
Em outro trecho da entrevista, ele fala das dificuldades de um homem negro para exercer seu ofício de artista: “A partir de 1944, com as campanhas lideradas por Abdias do Nascimento, é que foram parando de pintar a pele do ator branco de preto para fazer os papéis de negro.”
Como bem lembram alguns dos fãs do comediante mineiro nascido em Uberlândia, o cineasta Orson Welles, ao ser apresentado a algum brasileiro nos Estados Unidos, sempre perguntava: “E como vai o Grande Otelo?” Dizem as crônicas da época que os dois, o gênio Welles e o ator mineiro, se tornaram bons companheiros quando o diretor veio fazer um documentário no Brasil. Tomavam grandes porres juntos. Mas essa obra de Welles nunca foi concluída. Foi proibida e interrompida no meio das filmagens pelo todo-poderoso Departamento de Estado dos Estados Unidos. Motivo: teria um ponto de vista demasiadamente de esquerda.
Para as multidões de admiradores de Grande Otelo – ou Sebastião Bernardes de Souza Prata –, com o seu um metro e meio de altura, ele é, com razão, um dos maiores atores brasileiros. “O documentário é uma releitura política sobre ele, um resgate histórico da memória desse ícone da cultura brasileira que proporcionou ao público negro excelentes oportunidades para se reconhecer nas telas”, comenta o diretor Rossi dos Santos.
Foi andando pelas ruas, falando com transeuntes, ouvindo os fãs, que Otelo foi fortalecendo a sua base profissional iniciada no espetáculo da Companhia Negra de Revistas e apresentado como “o pequeno Othelo”. Bem cedo conheceu o significado da palavra exploração (no trabalho), como ele lembra no filme narrado em algumas passagens por Zezé Mota. Estabilizou, diz ele, sua vida financeira quando foi contratado pelo programa de Chico Anísio, A Escolinha do Professor Raimundo, onde fazia o seu personagem, Eustáquio, simplesmente genial.
Na sua brilhante trajetória como ator, Otelo trabalhou com os mais respeitados diretores da época. Além de Welles, com Joaquim Pedro de Andrade, Werner Herzog, Julio Bressane, Marcel Camus e Nelson Pereira dos Santos.
“Eu gosto de imaginar Otelo como um Exu, um orixá que abriu os caminhos para que pessoas negras pudessem estar aqui hoje, trabalhando com arte e cultura no Brasil, inclusive eu”, diz Lucas H. Rossi. “O seu papel é de extrema importância porque ele conseguiu abrir essa trilha para nós e colaborou não só como artista, mas como um Griô, o ancestral cuja vocação é preservar e transmitir as histórias e conhecimentos do seu povo.”
O filme de Welles que não aconteceu, censurado não apenas pelo governo estadunidense, mas também pelo Itamaraty e pela produtora RKO, pretendia se aproximar do modo de vida das classes proletárias e dos negros brasileiros. Welles ficou apenas na autoria do doc Um Filme Inacabado de Orson Welles, lançado nos Estados Unidos, sobre os jangadeiros cearenses. Mas não esqueceu o amigo. “Cadê ele?” perguntava de vez em quando. “Aquele ator negro, pequenino, que me deu um alô quando fomos apresentados.”
Em Othelo, O Grande, o espectador verá fragmentos das comédias históricas com Oscarito, parceiro do ator; de produções de Moacir Fenelon, da Cinédia, e o nascimento da produtora Atlântida, dos irmãos Burle. Tudo e todos estão na história do renascimento do cinema brasileiro, naquela época. Grande Otelo morreu em 1993, aos 78 anos de idade. Um enfarto fulminante matou-o quando desembarcava no aeroporto de Paris. De lá, ele iria para o Festival de Cinema dos Três Continentes de Nantes para receber uma grande homenagem.
*Léa Aarão Reis é jornalista.
Foto da capa: Grande Otelo em cena do filme Rio Zona Norte, 1957
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