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Opinião

O Brasil afortunado

O Brasil afortunado

Artigo por RED
03/01/2023 05:00 • Atualizado em 03/01/2023 19:26
O Brasil afortunado

Por WALTER MORALES ARAGÃO*

“Veja meu bem/ Gasolina vai subir de
preço/ E eu não quero nunca mais seu
endereço/ Será o começo do fim
ou o fim?”
Vital Farias. (Veja) Margarida.

 

Jano, o bifronte, deus romano que olha ao mesmo tempo para os inícios e os fins, deu seu nome ao mês de janeiro. E, nesta passagem de ano de 2022 para 2023, janeiro permitirá uma leitura mais apurada do passado recente. E, igualmente, vislumbrar as tendências dominantes para os rumos do Brasil no futuro próximo.

Passado recente que mostrou no segundo turno da eleição presidencial, em 30 de outubro, o confronto eleitoral dos dois grandes campos políticos do Brasil atual: o vencedor, com a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, que é o progressismo social-democrático ampliado; e o derrotado, na candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro, o conservadorismo dinamizado pela extrema-direita.

Esta situação imediata produz um paradoxo aparente, coerente com as imagens políticas invertidas que caracterizam o andamento da política brasileira recente.

Assim, por exemplo, o governo Bolsonaro apresentou-se ao imaginário político como conservador e, ao mesmo tempo, anti-sistêmico. Declarou-se opositor da modernidade, por ele identificada como marxismo cultural. E defensor de uma imagem idealizada de família tradicional, em oposição aos avanços identitários e libertários pós-modernos. Comportou-se quase como oposição no governo, empenhando-se militantemente no desmonte de legislações e estruturas estatais e sociais baseadas na Constituição Federal de 1988. Com dinâmicas e simbologias de características proto-fascistas, assemelhou-se a uma tropa de ocupação estrangeira, tal o desmonte e as inversões de propósito que imprimiu na administração pública e estimulou na sociedade civil.

A candidatura vitoriosa do petista Lula, apoiado pela esquerda e por setores de centro e até da direita formal-democrática, representou o leque do progressismo social-democrático. E contou com o apoio dos segmentos sociais hostilizados permanentemente pelo bolsonarismo – hostilidade sistemática praticada na sociedade civil, por setores empresariais e pelo próprio governo federal, além de seus aliados nos governos sub-nacionais. Dada a proeminência da extrema-direita entre as forças políticas tipicamente pró-capital, o progressismo social-democrático resultou parecer, paradoxalmente, como o defensor de alguma ordem civilizada na sociedade e no Estado brasileiro. Situação parecida com a do “comunismo confucionista” da República Popular da China que, guardadas as proporções, obteve respaldo por oferecer algum ordenamento, após a devastação causada pelas invasões europeias no século XIX e pelo imperialismo japonês no século XX.

O período de dois meses subsequente ao segundo turno das eleições de 2022 explicita ainda mais o caráter paradoxal da situação. O presidente no cargo ausentou-se completa e dramaticamente da cena política e muito da administrativa. Tornou-se praticamente um governo virtual, muito além da conhecida figura do “pato manco”, que representa na crônica política os governos em fim de mandato. O que obrigou o governo eleito, para evitar-se o vácuo político e mesmo para o encaminhamento de medidas práticas via Equipe de Transição, a quase efetivar-se como administração, ultrapassando a virtualidade normalmente costumeira nesses momentos.

Além disso, a singularidade da situação faz também recordar a interpretação internacional existente de que os governos de extrema-direita atuais tem consolidado sua força política de modo notável quando conseguem a reeleição. Produzem mais alterações constitucionais e legislativas, como também reforçam suas posições na sociedade. O que, de momento, andando sobre o fio da navalha, a sociedade brasileira conseguiu evitar através da formação de uma maioria eleitoral contrária à consolidação do bolsonarismo. Peculiaridade tal que fez com que Jair Bolsonaro fosse o primeiro presidente brasileiro, no cargo e em busca de reeleição, a ser derrotado.

É notável também que esta vitória popular-democrática, conduzida pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados, apresentou a toda uma coorte de jovens a habilidade política atualizada de Lula. O número recorde de eleitores e eleitoras jovens que se habilitaram para este pleito, pouco mais de dois milhões, simbolicamente é quase idêntico à diferença obtida por Lula sobre Bolsonaro no segundo turno.

Situação toda que permite também outra associação à uma figura mitológica, a deusa grega Fortuna. Representada por uma mulher ágil e fugidia, a Fortuna é completamente calva, com a exceção de uma mecha de cabelos na testa. Assim, quem não a segurar pela mecha assim que a encontrar, nunca mais voltará a vê-la. Chance histórica que o povo brasileiro parece ter construído para si mesmo.

Adorno disse que usamos alegorias quando nos falta o conceito. Seguindo-o, espero que a nossa democracia tenha os braços múltiplos de certas divindades hindus para enfrentar a gama de desafios típica dos países do capitalismo periférico. O que, com a inspiração advinda da coletividade fraterna dos orixás afro-brasileiros, poderá ser feito com bons resultados para um projeto de país inclusivo e democrático. Ajuda, sem dúvida, de valor para um novo mundo
multipolar e sustentável, humana e ambientalmente. Axé!


*Professor de Filosofia. Possui especialização em História Contemporânea, Mestrado e Doutorado em Planejamento Urbano e Regional. É participante do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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