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Opinião

O bolsonarismo não existe

O bolsonarismo não existe

Artigo por RED
04/11/2022 09:26 • Atualizado em 05/11/2022 09:58
O bolsonarismo não existe

De NARA MAGALHÃES*

Com o término das eleições presidenciais que consagraram uma espetacular vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente eleito com mais de 60 milhões de votos, vimos eclodir alguns protestos antidemocráticos no Brasil. Analistas apressados rapidamente atribuíram a iniciativa das manifestações a “grupos bolsonaristas”. Mas o “bolsonarismo” existe? Esse texto tem a intenção de contribuir para uma breve reflexão visando questionar essa expressão, demonstrando que ela não se sustenta socialmente.

Algumas perguntas para refletir: podemos caracterizar o voto e apoio a um candidato
como um movimento social? Podemos qualificar com o nome de um candidato a expressão de
ações sociais significativas? Ou trata-se de um candidato que expressa interesses de um grupo
de elite, que pode ser substituído por outro candidato que canalize os anseios desse grupo?

Buscando respostas, vejamos a definição de movimento social. Para os especialistas da área¹, movimento social é uma forma de organização da sociedade civil, que congrega um grupo de pessoas com objetivos comuns e que luta para atingi-los. Alcançar mudanças sociais através de ações coletivas é outra característica dos movimentos sociais. Identidade, objetivos comuns de curto e longo prazo, ideais compartilhados, movimentam pessoas diferentes em
busca de um ideal comum de mudança. Os grupos se organizam conforme um projeto e uma ideologia em comum, que sintetiza todas as propostas e objetivos relevantes para o movimento.

Podemos considerar que essas pessoas têm objetivos comuns, ideais definidos e potencial de mudança social? Essas mesmas pessoas que foram bloquear estradas para protestar contra o resultado das eleições, que se dirigiram à frente de quartéis pedindo intervenção militar, que ajoelharam em vias públicas festejando uma suposta prisão de
ministros do STF (para logo depois descobrirem que a realidade paralela do WhatsApp não passava de uma ficção), pessoas que são alvo diário das táticas de manipulação (atribuída a Bannon, mas que na verdade tem várias megaempresas digitais que buscam lucrar com manipulação em eleições), teriam essas pessoas um potencial de propor mudanças sociais organizadas?

Não é difícil perceber que a resposta à maioria desses questionamentos é negativa, pois a organização, coerência e objetivos comuns não os define. Tampouco a ideia de coletividade. São pessoas que se identificam com a direita e com a extrema direita, e uma minoria até mesmo com o fascismo e o nazismo (mesmo que muitas vezes não compreendam toda sua extensão). Isso é grave e preocupante, uma ameaça à democracia. Sempre que ações desse tipo envolverem ou estimularem crimes como racismo, homofobia, uso e apologia de violência e tortura, etc. , os responsáveis devem ser identificados, punidos e responsabilizados. Paralelamente, ações sociais preventivas e educativas devem ser promovidas pelos poderes públicos democráticos constituídos.

Mas não podemos considerar que esses grupos de pessoas estejam unidas e coesas em torno de um presidente que tem dias contados para desocupar o Palácio da Alvorada. Bolsonaro foi um candidato usado pela extrema direita no Brasil, para completar o crime jurídico-político-religioso cometido contra Lula, orquestração que o levou à prisão injustamente, sem que ele houvesse cometido crime algum.

Bolsonaro elegeu-se em 2018 com uma série de subterfúgios já conhecidos e exaustivamente apontados, como a máquina de disparos de mentiras em massa pelo WhatsApp, o apoio maciço de empresários inescrupulosos que só miravam o benefício próprio, as igrejas neopentecostais que esqueceram o real significado da mensagem cristã, e até
mesmo o ensinamento bíblico sobre a separação Estado e religião.

E elegeu-se também com a tentativa de destruir o PT enquanto Partido, desqualificando-o diariamente e a todos os partidos, nisso reforçando o senso comum (partilhado até mesmo pela imprensa) do eleitor médio, para quem o importante na escolha é a “pessoa” do candidato e não o Partido. A direita em torno do então candidato e boa parte da imprensa cotidianamente, referem-se aos partidos políticos, em especial os de esquerda, como se fossem perigosos e ameaçadores aos interesses coletivos. Pelo contrário, sabemos que uma sociedade sem partidos políticos fortes fica ao sabor de líderes oportunistas de momento e ocasião, como foi o caso de Collor e tem sido Bolsonaro.

Sua candidatura foi fruto de um acordo de elite semelhante aos grandes acordos em momentos históricos cruciais no Brasil, desde o Brasil colônia: passando pela Independência bradada por um membro da família real colonizadora; pela República proclamada por um Marechal; pelo golpe militar com apoio de parte da sociedade civil; pelo acordo de elite ao final do regime militar, garantindo que não haveria “revanchismo” e nenhum torturador seria punido; culminando no golpe dado a uma Presidenta legitimamente eleita, que levou o vice a assumir por dois anos, e logo depois emplacando um candidato “encomendado”.

É a esse candidato encomendado, que contou com apoio de toda uma elite financeira, industrial, agropecuária, armamentista, farmacêutica, nacional e internacional, que se deseja atribuir uma liderança semelhante à de um movimento social, que mereceria levar seu nome?

Bolsonarismo e bolsonaristas só existiriam se existisse uma liderança orgânica que motivasse essa denominação. Acredito que nomear assim os eleitores que o apoiaram seria atribuir importância demasiada a um candidato descartável, substituível, e que só teve o papel provisório (e felizmente ilusório) da elite, de destruir o PT.

Este breve texto representa apenas um alerta e um convite à reflexão, sem a pretensão de esgotar o tema, na rápida abordagem feita aqui sobre as características dos movimentos sociais e da candidatura de Bolsonaro. Por outro lado, merece sim ser estudado o fenômeno de tentativas de manipulação e influência em massa em eleições democráticas ao redor do mundo, patrocinado pelas gigantescas empresas de mídias digitais. Mas esse é um outro foco sobre o tema, bem mais amplo e complexo, ao qual devemos estar atentos, e certamente deve motivar muitas outras reflexões necessárias ao campo democrático.


*Antropóloga, estudiosa dos significados da política para grupos populares, autora dos livros O Povo Sabe Votar – uma visão antropológica, e Eu vi um Brasil na TV- televisão e cultura em perspectivas antropológicas.

¹Autores como Pedrinho Guareschi, Maria da Gloria Gohn, Alain Touraine, entre outros.

Foto em Fotos Públicas.

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