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Opinião

O Banco dos BRICS na emergência do Mundo Multipolar: o que esperar da gestão de Dilma Rousseff

O Banco dos BRICS na emergência do Mundo Multipolar: o que esperar da gestão de Dilma Rousseff

Artigo por RED
01/04/2023 16:30 • Atualizado em 03/04/2023 16:36
O Banco dos BRICS na emergência do Mundo Multipolar:  o que esperar da gestão de Dilma Rousseff

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

No dia 29 de março de 2023, a economista Dilma Rousseff, Presidente do Brasil entre 2011 e 2016, assumiu a Presidência do Novo Banco do Desenvolvimento, NBD, em sua sede em Shangai, na China. O NBD – mais conhecido como Banco dos Brics – tem um futuro promissor e cumprirá uma função importante na construção do mundo multipolar que se anuncia com a crise da hegemonia norte-americana e seus aliados da OTAN.

Infelizmente, a grande imprensa brasileira não alcançou dar o devido destaque ao fato e analisá-lo com a profundidade que mereceria. O que não pode nos surpreender. De um lado, o comprometimento dos jornalões e redes de televisão com o senso comum atlantista e otanista os cega para tudo o que vem emergindo no mundo a partir do desafio asiático (em especial das três maiores economias dos BRICS: China, Índia e Rússia) à hegemonia decadente do G-7. E, de outro, o rançoso anti-petismo destes mesmos veículos de “informação” os impede de perceber qualquer novidade ou importância no fato, preferindo dar destaque e manchete para o salário que será auferido pela economista Dilma Rousseff na nova função. Desnecessário esclarecer que, quando o economista brasileiro Marcos Troyjo assumiu a função, em 2020, no segundo ano do mandato de Jair Bolsonaro, os mesmos veículos de “informação” não consideraram relevante o tema “salarial”. Pelo contrário, com raríssimas e honrosas exceções, a cobertura da imprensa apenas focava na qualificação e experiências exitosas do economista Troyjo, ex-assessor do Ministro Paulo Guedes na área de Comércio Exterior.

Não cabe, porém, reproduzir as práticas do mau jornalismo. É preciso dar a César o que é de César, reconhecendo a qualidade do trabalho de Troyjo na ampliação significativa do percentual de financiamento recebido pelo Brasil nos anos em que o Banco esteve sob sua direção. Porém, também é preciso entender o sentido da substituição proposta por Lula e aprovada de forma unânime pelo conselho gestor do NBD. Ao contrário do que a grande imprensa procurou sinalizar de forma (nada) sutil, a nomeação de Dilma segue determinações técnicas muito precisas e não tem qualquer relação com a pretensa entrega um posto de destaque e alto salário para uma liderança do PT que foi afastada de suas funções como Presidente da República pelo golpe de 2016. A razão pela qual foi necessário realizar uma troca na gestão do NBD é que esta organização ganhou um potencial de ação e de promoção do desenvolvimento mundial completamente novo a partir de 2022. Um potencial que transcende, em muito, a capacidade de compreensão e intervenção de um profissional com o perfil do Marcos Troyjo, de inflexão liberal e claramente alinhado com a hegemonia atlantista e otanista agora em crise (voltaremos a este ponto logo adiante).

Qual foi a grande transformação que se deu em 2022 e que pode ser tomada como uma ruptura geopolítica radical? Ao contrário do discurso senso comum dos jornalões, este corte não foi dado pela invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. Mas, isto sim, pelo recrudescimento das sanções ocidentais à Rússia (inauguradas em 2014) que se seguiram à operação militar especial de fevereiro. Especialmente às severas circunscrições (e, no limite, bloqueio e captura) do acesso do Banco Central da Rússia (BCR) às suas reservas internacionais denominadas em dólar e em euro. Mas que envolveram também:

  • Exclusão de vários dos principais bancos russos do sistema bancário internacional SWIFT, uma rede de alta segurança que facilita os pagamentos entre cerca de 11 mil instituições financeiras em 200 países.
  • Encerramento de todos os programas do Banco Mundial na Rússia;
  • Término de todas as operações da União Europeia com o BCR;
  • Suspensão de todos os financiamentos da Comissão Europeia para instituições russas de pesquisa e inovação;
  • Sanções financeiras, incluindo congelamento de depósitos bancários e imobilização de bens, contra empresários e políticos russos, incluindo o presidente Putin, o primeiro ministro Mikhail Mishustin e o ministro das relações exteriores Sergey Lavrov, e mais 351 parlamentares russos que votaram a favor do reconhecimento das regiões separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk como estados independentes;
  • Fechamento do espaço aéreo da União Europeia, dos Estados Unidos e Canadá para todas as aeronaves da Rússia;
  • Bloqueio das transmissões na UE das mídias russas (Russia Today e Sputinik)
  • Término do contrato do gasoduto Nord Stream 2 que deveria levar gás russo para a Alemanha

O importante a observar é que um conjunto tão amplo de sanções não foram aplicadas à URSS sequer no auge da Guerra Fria. Mais: na medida em que elas se revelaram insuficientes para deprimir, seja a economia russa (após uma forte queda, o câmbio entre dólar e rublo encontra-se hoje, no mesmo patamar de 31 de dezembro de 2021), seja o apoio popular à gestão do Presidente Putin, as sanções e retaliações foram crescendo em radicalidade.

Em 26 de setembro de 2022, os gasodutos Nord Stream 1 e 2 foram objeto de sabotagem, orquestrada pelos Estados Unidos com a colaboração da Noruega, país membro da União Europeia e um dos maiores exportadores de gás e petróleo do mundo. E como se esta ação terrorista não fosse o suficiente, há poucas semanas, em 17 de março de 2023, o Tribunal Penal Internacional (ligado ao Conselho de Segurança da ONU) foi utilizado politicamente para sancionar a Rússia, emitindo um mandado de prisão para o Presidente Vladimir Putin sob a acusação de sequestro de crianças da área de guerra (e, portanto, passíveis de morte no fogo cruzado) nos territórios em conflito no leste da Ucrânia (veja-se, aqui, o relato detalhado das ilegalidades deste triste processo) . Do nosso ponto de vista, este foi o passo mais dramático e emblemático da ruptura geopolítica em curso. O que fica claramente caracterizado na ordem de prisão de um Chefe de Estado de um país que não é membro do TPI é a crescente transformação de instituições e organizações internacionais – originalmente criadas com vistas à promoção da paz e do diálogo no mundo – em instrumentos de exercício do poder imperialista dos países do Atlântico Norte organizados no G-7 e na OTAN.

O mais importante, contudo, é que, se este quadro de conflito entre “Ocidente e Oriente” ganha máxima transparência a partir da Guerra da Ucrânia, ele não tem origem neste conflito. Na verdade, o principal adversário dos países cuja hegemonia está em clara decadência sequer é a Rússia. Hoje, os dois países cuja ascensão no mundo – nos planos econômico, político, diplomático, cultural e militar – vêm alterando de forma substantiva o antigo equilíbrio Otanista são China (em primeiro lugar) e Índia (em segundo lugar). A China já é a maior economia do mundo em termos de Paridade de Poder de Compra (PPP, na sigla em inglês). E a Índia passou a disputar com a China em termos de taxas anuais de crescimento do PIB, já é o país mais populoso do mundo e recentemente superou o PIB do Japão em PPP, tornando-se a terceira maior economia do planeta. Enquanto isto, a Rússia morde os calcanhares da Alemanha na disputa pelo quinto lugar em PIB-PPP. E deverá alcança-la e superá-la logo, pois a economia alemã foi fortemente abalada pelo rompimento das relações comerciais com a Rússia, que levou ao fim do fornecimento de combustível barato pelo sistema Nord Stream.

Definitivamente, o mundo está mudando. E a utilização da Ucrânia como proxy no conflito entre os hegêmonas decadentes e os novos países com potencial hegemônico tem tudo para se transformar “apenas” numa primeira (mas já trágica) experiência do que poderá vir a ocorrer no futuro, via exploração do conflito potencial entre China Continental e Taiwan e/ou entre Índia, Paquistão e Bangladesh.

É neste sentido que o NBD – o Banco dos BRICS – ganha uma expressão ímpar e única na equação geopolítica inaugurada em 2022. Como desdobramento do bloqueio das reservas russas no Ocidente após a invasão da Ucrânia, a China vem deprimindo sistematicamente suas posições em títulos do Tesouro Norte-Americano ao longo de 2022 e 2023, ao mesmo tempo em que amplia suas reservas em ouro. Não obstante, há sérios limites para estas medidas protetivas. Desde logo, não há ouro suficiente no mundo para converter todo o superávit estrutural chinês em reservas deste padrão. Ou, para ser mais exato: dada a escassez estrutural deste metal e dada a nova expressão da economia chinesa no mundo, qualquer tentativa de basear as reservas deste país no ouro levariam a uma grande elevação no preço do metal e, por consequência, à instabilidade e à incerteza sobre o valor efetivo das reservas no curto, no médio e no longo prazo. Afinal, ao contrário das moedas nacionais, a oferta e demanda de metal não é objeto de controle por uma instituição governamental ou para-governamental (um Banco Central) e, portanto, é objeto de flutuações especulativas muito mais intensas.

Simultaneamente, a construção de uma nova moeda internacional é um processo longo e complexo. Não é algo que irá se realizar e consolidar brevemente (a este respeito, veja-se Paiva, 2022). Por fim, não interessa à China transformar o RMB nessa nova moeda mundial, em substituição ao dólar. Pois isto envolveria uma perda de controle do governo chinês sobre a taxa de câmbio do RMB com outras moedas. Pior: poderia levar à perda de controle do seu sistema financeiro interno, que paulatinamente seria aberto à especulação internacional. Isso significa dizer que uma parte crescente das reservas chinesas terão que ser canalizadas para ativos reais, vale dizer, para investimentos produtivos no exterior.

Ora, a China já vem realizando este movimento há muito tempo através de seus Fundos Soberanos, dos quais o mais importante é o China Investment Corporation (CIC). Mas há uma diferença fundamental entre o CIC e demais Fundos Soberanos Chineses e o NBD. Enquanto os Fundos Soberanos voltam-se à diversificação e valorização das reservas chinesas, o NBD está baseado, tanto em recursos denominados em moedas nacionais dos países membros, como em uma parcela relativamente pequena das reservas internacionais de todos os estados membros dos BRICS. Além disso, o NBD tem como função precípua o apoio ao investimento em infraestrutura e ao desenvolvimento sustentável dos países membros.

Desde logo, isto significa dizer que – ao contrário do CIC – a taxa de retorno das aplicações do NBD não é, nem o primeiro, nem o único critério a ser levado em consideração em sua estratégia de aplicação e financiamento. Em segundo lugar, isto significa dizer que os critérios e políticas de financiamento do NBD são objeto de definição pelo conjunto da comunidade dos BRICS, e não apenas pela China. E este segundo ponto é da maior importância para nós. Pois os desafios interpostos ao desenvolvimento de cada país membro dos BRICS são muito distintos.

A Rússia, mais do que qualquer outro dentre os 5 países do bloco, se depara com grandes desafios no que diz respeito à sua reinserção no comércio internacional, na medida em que as repetidas sanções do segmento atlanto-otanista fecharam mercados expressivos para suas commodities minerais, produtos agrícolas e bens industrias (em especial, de sua importante indústria bélica). A China vem sendo desafiada em função de sua crescente hegemonia tecnológico-industrial, e provavelmente será objeto de novas sanções e retaliações nesta área (se também não o for no campo financeiro e militar, tal como a Rússia). Os desafios da Índia são fundamentalmente internos, ligados à expansão do mercado interno e ao controle das tensões políticas em um país onde a estratificação social ainda é baseada em castas e onde os conflitos entre hindus e muçulmanos estão sempre “por um triz”. A África do Sul ainda não se livrou completamente do pesado passado do apartheid e sofre as consequências da migração de trabalhadores dos estagnados países do sul do continente em busca de melhores oportunidades de vida; a despeito dela mesma, África do Sul, vir apresentando taxas de crescimento da renda e do emprego relativamente baixas. E o Brasil vive o drama de uma sociedade cujo potencial de desenvolvimento é solapado diuturnamente pelos golpes perpetrados por uma elite que insiste em atualizar o escravismo e o patrimonialismo colonial pela criação de estruturas formalmente “modernas” que cumprem uma única e mesma função: preservar os privilégios de alguns em detrimento da maioria. É para isto que se volta o Banco Central Independente e suas taxas de juros usurárias, o sistema bancário-financeiro mais concentrado do mundo, o Judiciário mais caro e mais seletivo do globo, a estrutura fundiária mais desigual do planeta, o sistema tributário que taxa o assalariado e desonera lucros, dividendos e aluguéis, um sistema de serviços públicos que – a despeito dos avanços desde a Constituição de 1988 – ainda é seletivo e discricionário aos “de baixo”. E, como cereja do bolo, uma imprensa que só informa o que convém à Casa Grande.

O enfrentamento de problemas e desafios tão desiguais dos países que constituem o grupo dos BRICS, só pode ser realizado por uma estrutura multinacional, multilateral e voltada ao desenvolvimento sustentável dos mesmos. E sustentável em todos os níveis: ambiental, social e econômico. Tomemos como exemplo os problemas do Brasil, que tornam a presença da ex-Presidente Dilma Rousseff tão importante na direção do NBD.

Ao contrário da China e da Rússia – que viveram processos bastante radicais de enfrentamento da desigualdade e homogeneização das condições de inserção social e cultural durante a vigência do chamado socialismo real – Índia, Brasil e África do Sul são países marcados por profundas desigualdades. Mas, cada um à sua forma.

Ao contrário da Índia, onde as diferenças e desigualdades encontram-se explicitamente assentadas em critérios de casta, raça e religião, o Brasil e a África do Sul se apresentam como países onde vige a igualdade formal de todos os cidadãos. modernos”. Há, porém, uma diferença crucial entre estes dois últimos países: em sentido rigoroso, a descolonização da África do Sul é muito recente e só se completou com o encerramento definitivo do regime do apartheid durante o governo Mandela. Por oposição, o Brasil completou dois séculos como nação soberana, contando, desde 1822, com um Estado formalmente moderno; vale dizer: constitucional, com três poderes independentes, representação parlamentar, judiciário autônomo e sistema legal baseado nos preceitos iluministas. E, não obstante, o Brasil preserva padrões de excludência que são semicoloniais. Pois – como tantas vezes tentaram nos ensinar Raymundo Faoro e Florestan Fernandes –, em nosso país o Estado Constitucional foi estruturado como um sistema de conciliação, em que a modernização é seletiva e se articula à preservação dos elementos mais torpes da excludência colonial, baseada na escravidão, no latifúndio e no patrimonialismo. Vale dizer: no plano aparencial e formal, o Brasil é um país “moderno e ocidental”. Não gratuitamente, está pleiteando o ingresso na OCDE. Não obstante, a desigualdade socioeconômica brasileira é uma das maiores do mundo, encontrando-se em patamares que, usualmente, só são encontrados em países de passado colonial muito recente. De acordo com estimativas do Banco Mundial, dentro os países do BRICS, o Gini Brasileiro (de 54,6, na média dos anos entre 2005 e 2020) só é superado pelo Gini da África do Sul (média de 63,9; para os anos com estimativas disponíveis no mesmo período). Os demais membros do bloco – Índia, China e Rússia – apresentam índice de Gini similares – respectivamente 35,4; 39,2; e 39,5 – e “civilizados”. São índices discretamente superiores ao padrão típico da Europa Ocidental, mas inferiores ao índice de Gini dos EUA (média de 41,2 para o período considerado),

A importância dos elementos trazidos acima encontra-se na necessidade de reconhecer que os desafios interpostos ao desenvolvimento de cada um dos países que compõem os BRICS são muito distintos. E esta perspectiva é exatamente oposta àquela esgrimida por Marcos Troyjo em diversas manifestações públicas, tais como na esclarecedora entrevista ao Canal Livre da Bandeirantes em julho de 2022. Em mais de uma hora de debates com três jornalistas da “área econômica”, Troyjo dissertou longamente sobre sua leitura da economia brasileira e seu projeto de trabalho à frente do NBD. Mesmo reconhecendo que o NBD tem como missão prioritária o desenvolvimento sustentável dos países membros, em momento algum são apontadas as particularidades de cada país na realização dessa missão. Os distintos graus de desigualdade e exclusão no interior do bloco são sobejamente ignorados. Como também é ignorada a nossa peculiaridade como o país com a maior floresta tropical do mundo, que é a verdadeira base da eficácia do nosso agronegócio ao alimentar o sistema de chuvas do centro-oeste, do sudeste e do sul do Brasil (e do Mercosul) com seus famosos “rios voadores”. Pelo contrário, todo o discurso de Troyjo vai no sentido mais convencional da crítica à industrialização por substituição de importações, da crítica ao projeto de reindustrialização nacional e de elogio às medidas pretensamente universais capazes de promover o desenvolvimento de qualquer país do mundo: liberalização da economia, privatização, investimentos em infraestrutura, desregulamentação, abertura para o exterior, reforma tributária, etc. Em suma: o mantra neoliberal conhecido de todos.

O que nós precisamos hoje é de um discurso e de uma prática muito distinta. Em primeiro lugar, precisamos reconhecer as diferenças notáveis nas responsabilidades, potencialidades de cada país do bloco, bem como reconhecer as igualmente notáveis diferenças em termos desafios e gargalos interpostos ao desenvolvimento nacional.

Há uma responsabilidade que é comum a todos os membros: a sustentação econômica do Banco. Porém, mesmo esta responsabilidade deve ser pensada em termos solidários. Afinal, não podemos ignorar, nem as diferenças nas dimensões das economias do bloco, nem, em especial, a situação atual da Rússia, que teve a maior parte de suas reservas sequestrada pelos países da OTAN e associados. De qualquer forma, os expressivos saldos em Transações Correntes e na Conta Capital das quatro maiores economias dos BRICS garantem um volume de ativos muito maior do que o necessário para uma expansão acelerada do Banco e dos seus investimentos dentro e fora do bloco. China, Rússia, Índia e Brasil estão, respectivamente, em primeiro, quarta, quinta e oitava posição em volume de reservas do mundo em 2022. Mesmo com o sequestro de parte das reservas russas, este volume é muito superior às necessidades de capitalização do NBD e dos fundos soberanos dos respectivos países.

Mas também há responsabilidades e potencialidades que são peculiares e específicas de cada país. Trazendo o tema para a esfera do Brasil, temos que considerar o papel protagonista deste país na preservação da cobertura florestal e da biodiversidade mundial, do enfrentamento do efeito estufa e, simultaneamente, da produção de alimentos saudáveis e em volume necessário ao atendimento de uma parcela crescente da demanda mundial. E tudo isto passa pela preservação da Amazônia. Que – ao contrário do que usualmente se pensa – não significa cercear os investimentos neste território, deixa-lo intocado e estagnado. Pelo contrário: a preservação da Amazônia pressupõe a inclusão social e a melhoria das condições de vida da população residente neste amplo território a partir de investimentos consistentes com a sustentabilidade ambiental neste bioma tão peculiar.

Se fôssemos ingressar neste tópico com a profundidade que ele requer, teríamos que escrever pelo menos mais um artigo. Mas também não podemos deixar que uma questão desta importância fique sem qualquer determinação. Ou ela poderia ser vista como mais uma daquelas “palavras de ordem que são tão belas e bem intencionadas, quanto carentes de objetividade”. Um único exemplo será suficiente para mostrar a existência de soluções reais e concretas para a questão apontado acima.

Como se sabe, a densidade demográfica na Amazônia é extraordinariamente baixa e deve continuar sendo se apostamos na sustentação do bioma. Porém, existe uma população amazônida que está espraiada por todo o território e que precisa de assistência e inclusão. Uma inclusão que deve ter como ponto de partida a inclusão nos sistemas de informação e comunicação, que é condição sine qua non para que os domiciliados nos mais diversos rincões do território demandem e tenham acesso célere aos serviços públicos básicos de saúde, educação e segurança. Isto implica universalizar a internet e os serviços de comunicação por um território enorme e com uma população rarefeita.

Este é um desafio absolutamente único no mundo, que exigirá toda a capacidade de inovação do governo brasileiro bem como uma base de financiamento não desprezível. Ora, já existem sistemas capazes de dar conta deste desafio. Hoje já existe a tecnologia necessária para a instalação de torres elevadas que se comunicam diretamente com os satélites geradores dos sinais da internet e que se comunicam com os aparelhos receptores diretamente, sem cabeamento. Estas torres podem funcionar durante muito tempo com baixíssima necessidade de manutenção, desde que usem um sistema múltiplo de geração de energia, com a combinação de energia solar, energia eólica e armazenamento da energia excedente em baterias de lítio. Na verdade, tendo em vista o tempo de exposição ao sol e a intensidade dos raios solares nos trópicos, o excedente de energia para além das necessidades de manutenção da rede poderia ser canalizado, inclusive, para a geração de hidrogênio (o combustível do século XXI) a baixíssimo custo.

Um sistema similar já foi implantado em alguns países da Europa. Contudo, ele se mostrou disfuncional porque as redes tradicionais – com cabeamento e/ou torres locais para a replicação do sinal da internet – já se encontram amplamente difundidas, de sorte que o custo da implantação do novo sistema não é compensado pelos benefícios. Além disso, a opção europeia foi a utilização das baterias muito mais caras e muito menos duráveis do que as baterias chinesas, com vistas a fugir da dependência tecnológica do novo gigante industrial. Este é um temor que não nos cabe ter. Pelo contrário: podemos e precisamos trabalhar em cooperação, seja no sentido de estimular o desenvolvimento industrial chinês, seja no sentido de apreendermos com eles e transferirmos parcelas crescentes de tecnologia.

Alguém poderia pretender que não cabe ao NBD propor projetos de investimento, mas tão somente recebe-los e avalia-los em termos de viabilidade econômica. Ousamos discordar. Do nosso ponto de vista, um organismo plurinacional de promoção do desenvolvimento também deve ser propositivo. Desde que estas proposições se baseiem no conhecimento das peculiaridades e desafios de cada país e no respeito às prioridades dos seus respectivos governos. Dado este conhecimento e respeito, cabe, sim, ao NBD propor alternativas de investimento que só podem ser percebidas a partir de um olhar global. Da mesma forma como o faz, por exemplo, o Banco Mundial. Só que no caso do NBD, as proposições devem vir despidas do viés ocidentalista e atlantista que sempre caracterizou – e, como vimos, caracteriza cada vez mais – a perspectiva das organizações internacionais articuladas no Sistema ONU, tais como o FMI e o já referido Banco Mundial. Ela deve ser clara e ricamente plural.

Cada um dos países que compõem o BRICS hoje – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – são verdadeiros continentes marcados por uma riqueza e diversidade internas extraordinárias. Esta riqueza cultural, tecnológica e histórica é a base que precisamos para as inovações realmente relevantes: as inovações que rompem com os paradigmas tradicionais e consolidados. Inclusive com o paradigma do que seja “inovação”. Ela nem sempre é de ordem tecnológica. Nem sempre é poupadora de trabalho. E não precisa ser excludente. Ou melhor: nos nossos casos ela tem que ser includente e multicultural. É desta perspectiva – a perspectiva do holista e criativa do bricoleur, tantas vezes saudada pelo mestre Levi-Strauss – que precisamos nos mover na construção do novo mundo multipolar. Dilma Rousseff, mais do que qualquer outro economista brasileiro – tem todas as condições para entender e realizar esta tarefa.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Foto: Dilma em reunião no Banco dos BRICS – Reprodução/NDB

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