Opinião
O 20 de setembro gaúcho
O 20 de setembro gaúcho
De ADELI SELL*
O dia 20 de setembro, conhecido como o Dia do gaúcho, é feriado no estado do Rio Grande do Sul. A maior festividade para marcar esta data está no Acampamento Farroupilha da capital no Parque da Harmonia, agora sob um comando privado, espaço que a municipalidade abriu mão de gerir.
Tornou-se feriado desde 1978 em todo o Estado pela lei estadual 4.453/78. Um decênio depois começaram os primeiros movimentos de algumas pessoas acampando no Harmonia. Na atualidade, há acampamentos – na trilha do de Porto Alegre – em quase todas as cidades do Estado.
A origem desta data remonta ao longínquo 20 de setembro de 1835, quando tropas de Bento Gonçalves, Onofre Pires, Gomes Jardim saíram de Guaíba, cruzaram o Guaíba, adentraram a capital, dando início à Guerra dos Farrapos. O governador Antônio Fernandes Braga fugiu para Rio Grande. Por nove meses os rebeldes farrapos tomaram a capital. Em junho de 1836 um grupo de prisioneiros políticos consegue liberar-se e retomar o controle de Porto Alegre para o Império brasileiro, expulsando o exército Farroupilha. Por quatro anos os farrapos cercaram a capital, impedindo acessos, em especial alimentos necessários ao povo do local. Liderados por Bento Gonçalves, Canabarro, General Neto e José Antônio da Silveira não deram paz aos moradores dali, cuja maior parte da população não nutria simpatia pela causa, pois esta era uma causa dos charqueadores, dos estancieiros, da campanha interiorana em luta contra os altos impostos do Império.
Os farrapos tinham um exército de 1000 a 1400 homens no cerco à capital, enquanto o Exército Imperial nunca chegou a ter 500. Porém, nos ataques que sofria, a população armada ia para as barricadas, para as entradas da cidade, combatendo e impedindo os farrapos de tomar novamente a região. Nestes embates surge pela defesa da capital uma figura não militar, filho de um comerciante local, Chico Pedro ou Moringue (é nome de uma rua no Bairro Cristal), tornando-se o seu principal defensor em apoio a Osório e Andrade Neves. Os farrapos abandonam o cerco, dirigindo-se ao interior do Estado. Bento já tinha sido preso em 1937 na sangrenta Batalha do Fanfa (uma ilha no Rio Jacuí).
A Guerra termina em 1845 depois de um decênio de uma luta intestina, pois as peleias se davam entre residentes, mesmo com um ou outro comandante de fora.
Não temos este episódio como uma “revolução”, apesar da contestação ao Império pelos farrapos que se tornaram republicanos mais por oposição ao Imperador do que por convicção política e ideológica. Outro mito que precisa ser desmentido é que os farrapos eram antiescravagistas. Seus líderes eram donos de escravos. E o fato que desdiz esta mentira foi o massacre de Porongos no qual os negros desarmados na véspera foram massacrados pelas tropas imperiais. Tudo indica que o traidor foi o General Davi Canabarro em acordo com Duque de Caxias. Neste episódio aparece também o Moringue, aquele que defendera a capital.
Em 1° de março de 1845 foi assinado o Tratado de Paz do Ponche Verde, em Dom Pedrito, com 12 cláusulas escritas por Vicente da Fontoura (nome de rua em Porto Alegre) e o Gen. Canabarro, representando o Império.
O QUE SE FESTEJA?
Estranhamente, a capital é a que mais festeja, a que mais junta pessoas em suas festividades, dia de desfiles, de usar a indumentária gaúcha. Dia de cavalgar por ruas e praças, numa exaltação do “monarca dos pampas”, mito criado para compor a figura do típico gaúcho.
Porto Alegre nunca foi farrapa. Sempre ficou ao lado do Império, tanto que o povo ia para o confronto. Os intentos dos farrapos quanto à luta contra os impostos não tocava de perto os citadinos de então. Por isso, Dom Pedro deu o título de “mui valorosa” a Porto Alegre.
Mas então por que os festejos?
A ideia da pacificação, da união dos gaúchos de “todas as querências” se dá um século depois quando da Grande Exposição feita no Parque da Redenção, o qual muda de nome para Parque Farroupilha. Na verdade, também era uma ficção, pois havia uma disputa renhida entre os velhos amigos Getúlio Vargas como presidente e o General Flores da Cunha como governador, agora adversários.
Mas o que restou foi a ideia, tanto que em 1948, no Colégio Julinho surge o movimento liderado por Barbosa Lessa, Paixão Cortes, com a criação do CTG 35, vem a pilcha, o chapéu, o homem montado. O gaúcho unido e forte surge, portanto, um século depois. Pois vale lembrar que os gaúchos se mataram em duas guerras que costumam chamar de revolução: 1893 e 1923. Na primeira houve degolas e sangue como jamais se vira.
Portanto, festeja-se o mito, uma criação local, humana, de um tipo que se mistura, que tanto o patrão como o peão vestem bombachas e as mulheres se vestem de prendas, com seus vestidos “prendados”.
A APROPRIAÇÃO DO MITO
Os mitos vem de longe: Gilgamesh, a Bíblia, dos incas e de tantos outros. Povos tem seus mitos, suas lendas. E muitas mentiras também, como é o caso de nossa formação.
O gaúcho originalmente era o estrangeiro, o de fora, “não era trigo limpo”, mas o termo vai criando outros significados, com forte matriz terrunha, criando na música, na pajadas, na poesia e na literatura figuras e termos emblemáticos que vão conformando o tipo local, o gaúcho, e às vezes a prenda, sempre de forma subalterna.
O Canto Alegretense é considerado um hino gaúcho/gaudério nos quatro cantos do Estado, mas nem todos gaúchos sabem o que é “flor de tuna” ou “camoatin de mel campeiro”. Porém todos cantam. O mesmo se dá com o Hino Rio-grandense que todos cantam. Sim, todos. Mais recentemente houve alguma contestação a uma parte de uma estrofe, que nem todos concordam com a leitura crítica, mesmo tendo uma visão crítica. “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra” é uma frase emblemática do tipo gaúcho/gaudério. Outro termo que era sinônimo de ladrão, mas que
virou indicativo de positividade ao homem autêntico.
Mas a apropriação mesmo se dá pelas direções do Movimento Tradicionalista Gaúcho que regra geral é capitaneada pelo que há de mais conservador e atrasado no Estado. O tal de MTG via seus CTGs ditam “a lei”, muitas vezes se confrontando com normas legais e estatais.
FUGA DO DEBATE
O debate civilizado que poderia haver sobre nossa Memória, contra o Esquecimento, com adequadas revisitas á historiografia oficial é bloqueado ao simples questionamento de qualquer ponto de nossa História. No Rio Grande do Sul em se tratando dos mitos, do 20 de setembro, da forma de agir nos CTGs nada pode ser questionado que a pessoa vira “estrangeiro”, forasteiro, “metido a besta”.
Tao Golin, professor e historiador, até hoje em dia é odiado e massacrado por parte do “status quo” do “gauderismo” local, ao apresentar Bento Gonçalves como ele de fato fora. De Rafael Pinto Bandeira, contumaz ladrão de cavalos e gado, pelo Rio Grande do Sul afora, passando pelas expropriações na Guerra dos Farrapos, da Guerra Civil de 1893 95 o roubo e a pilhagem eram comuns.
Reconhecer os fatos, analisá-los para tirar lições é o que nós todos deveríamos estar fazendo neste 20 de setembro.
Porém, as vozes do silêncio ficam sumidas ao som de acordeonas, violões. Vozes tonitruantes de gaúchos cantam as glórias do monarca dos pampas, o homem sem pecados, altivo, fazendo a “civilização” na ponta da baioneta, dando pranchaços de facão.
Érico Veríssimo dá voz ao Rodrigo Cambará quando diz: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho”. Mas esta bazófia é apenas uma frase. “O Tempo e o Vento” poderia ser o mote para um bom debate. “Sem Rumo” e “Estrada Nova” de Ciro Martins poderia ser a continuidade.
Quando dos festejos do Centenário Farroupilha onde se tentava consolidar o mito do gaúcho, circulava o recém-lançado livro “Os Ratos” de Dyonélio Machado, mostrando um gaúcho urbano, perambulando em busca de um
empréstimo para pagar o leiteiro.
Está mais do que na hora de debatermos o Rio Grande do Sul real.
SEM CHICOTE, COM VEZ E VOZ
O chicote ou relho, com sua insustentável marca, virou símbolo do atraso, da covardia, da neurastenia impotente, como leio em Freud, nos últimos anos no Rio Grande do Sul, usado contra humanos, por autoridade em Bagé e na voz de uma senadora da República.
Não bastasse isso, um homem do agro, não é mais “homem do campo”, em recente episódio joga seu carro contra uma adversária política e visto pela Polícia foge; e seu infortúnio foi capotagem e morte. Se pudessem muitos gaudérios usariam o facão com talho e não de prancha; usariam mais o relho para açoitar, usariam a chaira para afiar a faca de açougueiro para melhor degolar.
De nada adianta este “novo gaúcho”, ser bizarro, ter um trator computadorizado, ele monta o crioulo, seu cavalo, usa esporas e relho no pobre animal, como agora usa contra mulheres, visto nas páginas de jornais. Não é de graça que algumas músicas gaudérias falam o que falam da morocha, esta guria mestiça, como uma égua fosse, que se palanqueia.
O mito era unir os gaúchos de todas as querências, mas o que se vê é uma volta aos embates de ferro e fogo do passado, por isso é bom rever o que foi o decênio da Guerra dos Farrapos. O que foram as degolas de lado a lado entre chimangos e maragatos.
Seria muito bom ouvir a voz de Cenair Maicá quanto canta o ‘Homem Rural Trabalhando’:
Trabalhando não viu a vida passar
O suor que regou a terra nem sementes viu brotar
Trabalhando, esperando, enfrentando chuva e sol
Enxada na terra alheia nunca traz dia melhor.
Assim a geada dos anos foi le branqueando a melena
E este homem rural hoje é peão de suas penas
É o gaúcho pé no chão, que canta o homem real, o sofrido gaúcho que não tem botas nem pilcha, mas uma calça de brim remendada e chinelos de dedos quando muito.
Se de um lado, nós tentamos mostrar estas mazelas, a construção de um Outro Rio Grande do Sul, aquele que é também o Nosso Estado se deu com contradições.
A História não tem caminhos retos, tem desvios, tem curvas, tem pedras no meio dele. Mas este caminho de busca de verdades, dos esquecimentos, dos tropeços se faz ao caminhar.
*Professor, escritor e bacharel em Direito.
Foto em Pixabay.
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