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Nossas casas, nossas vidas

Nossas casas, nossas vidas

Artigo por RED
12/07/2024 19:03
Nossas casas, nossas vidas

Jagna Stefani dos Santos*

A pandemia de COVID-19 e as enchentes no Rio Grande do Sul produziram comportamentos sociais distintos. Durante a pandemia, o isolamento social foi o mecanismo adotado para evitar a contaminação. As adaptações das casas aumentaram o fechamento das residências dentro de si mesmas, transformando-as em fortalezas impenetráveis e excludentes. Pessoas passaram a morar cada vez mais sozinhas e as coisas da casa, progressivamente, passaram a ocupar o lugar dos moradores. A casa tornou-se uma máquina hermética que comporta tudo que é necessário para uma vida sem precisar sair de dentro dela. Espaços projetados para uso comum passaram a ser usados solitariamente. O pouco que existia de coletivo se tornou mais rarefeito. Quanto mais as casas foram sendo preenchidas com equipamentos, agora comprados digitalmente, mais cresce o receio do externo e o estranhamento em relação ao próximo.

A busca incansável por manter a casa segura com grandes e trancas reflete o medo social da perda dos bens. Blindar a moradia passou a ser a melhor estratégia para uma vida resguardada dos perigos externos. No entanto, o que acontece quando o perigo deixa de ser o outro e passa a ser a natureza violentada? O que acontece quando o crescimento exagerado de construções e consumo desperta forças contra as quais não temos como nos proteger?

A calamidade climática expulsou as pessoas do enclausuramento e da segurança de suas moradias.  De um momento para o outro, populações inteiras de áreas alagadas foram desabrigadas e acolhidas por coletivos que se organizaram com uma rapidez impressionante. A pressão da água obstruiu portas, casas gradeadas se transformaram em jaulas e os tetos as únicas saídas. O outro, antes visto como inoportuno passa a ser bem vindo. Ir ao encontro do próximo e o salvamento de pessoas em apuros são exibidos como atos de heroísmo. Na casa isolada pela pandemia prevalecia o escondimento, na calamidade climática os atingidos precisaram ser vistos nas janelas, nos tetos, nas ruas e nos espaços de acolhimento.

Nos abrigos a convivência coletiva foi levada ao extremo. Em espaços coletivizados, separados apenas por um colchão e poucos pertences, a intimidade e a privacidade foram relativizadas. A enchente retomou com muita intensidade o comportamento solidário, a ajuda mútua, o acolhimento e a junção de forças. As pessoas abrigadas, longe de seus bairros e comunidades, passaram a perceber seus territórios de modo diferente. Não foi só a minha casa que foi alagada, o bairro inteiro, a casa do vizinho, a minha cidade, a minha região.

O retorno aos locais de origem está sendo acompanhado pelo sentimento de insegurança. O trauma da perda e a incerteza sobre o futuro marcaram a vida de pessoas que terão que se reerguer. Como consumir e acumular coisas se agora tudo pode ser arruinado outra vez? O medo de reconstruir, de restabelecer vínculos e de acumular bens é uma realidade para uma parcela expressiva da população gaúcha.

Quais respostas a arquitetura pode oferecer neste momento de incertezas? Optaremos pelo retorno ao encapsulamento ou por visões mais compartilhadas, coletivas, comunitárias e sustentáveis?

Os projetos arquitetônicos das grandes empreiteiras não se interessam pelos valores comunitários, prevalece edificações que distanciam e que aprisionam em caixas empilhadas, onde nada de verdadeiramente coletivo emerge. Recentemente o professor de urbanismo e arquitetura da UFRGS, Fernando Freitas Fuão demonstrou um certo ceticismo com a possibilidade de um perfil mais sustentável de reconstrução, para ele “certamente o modelo habitacional definitivo para as novas casas será o de sempre: casas grudadas umas às outras, porta e janela, para maximizar o custo do terreno e infraestrutura; ou em bloco de apartamentos de quatro pavimentos isolados um dos outros. Nenhum deles deu certo e somente estimularam mais violência.” De fato, esse modelo habitacional está sendo disputado por empreiteiras e grandes construtoras, as mesmas que financiam os nossos governantes. É o retorno da normalidade das construções verticalizadas, destituídas de senso de coletividade e despersonalizadas que será imposto.

Neste momento é necessário que as forças progressistas reconstruam um novo sentido de moradia e de cidade. Precisamos combater a lógica do não sustentável. Estamos sendo desafiados a estabelecer moradias mais orgânicas com o meio ambiente. Precisamos retomar a lógica de bairro, de comunidade e de pensamento coletivo, isso é essencial para transformarmos as nossas moradias e cidades em lugares mais saudáveis. O senso de coletividade e a solidariedade despertadas pela calamidade se aplicado nas novas edificações minimizará as diferenças sociais e contribuirá para uma cidade mais segura.

A enchente mobilizou uma cadeia de solidariedade que precisa ser retomada pelos movimentos sociais para produzir propostas de moradia mais sustentáveis ambientalmente. É crucial para o nosso futuro a construção coletiva que relativiza o individualismo do meu e do seu e que valorize as nossas casas e as nossas vidas.

Encontramos nas cidades gaúchas experiências de moradias cooperativadas, organizadas por movimentos de luta pela moradia que disputam uma concepção mais humanizada de morar. As cooperativas habitacionais, formadas por grupos de pessoas que se unem com o objetivo comum de construir suas moradias, permite que os futuros moradores participem ativamente de todo o processo, desde o planejamento até a execução das obras, o que fortalece os laços comunitários e assegura que as moradias atendam às necessidades específicas dos cooperados, promovendo a partilha de espaços.

Além das cooperativas habitacionais existe também as experiências de ocupações de prédios em desuso, geralmente em regiões vazias e desvalorizadas. Sempre conectadas com movimentos sociais, as ocupações desmembram o conceito de abandono e transformam prédios desabitados em novas soluções habitacionais. A ocupação de um edifício abandonado reconfigura as relações sociais dentro da cidade, transformando o entorno da edificação num lugar mais seguro e habitável.

Moradias dignas, com um tamanho adequado para a realidade familiar, que não descaracterize as particularidades da comunidade, que promovam a sustentabilidade e que incentivem o senso de coletividade é fundamental para a criação de bairros seguros e condizentes com a realidade gaúcha. Aceitar a construção de grandes lotes com pequenas habitações que reproduzem plantas melnicknizadas desconectadas da realidade social dos moradores, acaba favorecendo a guetização, a desigualdade social e a exacerbação de uma sociedade fria e individualista, onde a dor do outro passa despercebida.

* Arquiteta e Urbanista

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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