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Opinião

Nossa casa está em chamas

Nossa casa está em chamas

Artigo por RED
01/06/2023 05:30 • Atualizado em 04/06/2023 11:02
Nossa casa está em chamas

De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris

É fundamental mudar de paradigma e sair da era dos combustíveis fósseis, dizem todos os relatórios científicos

Eu poderia escrever sobre a infeliz ideia de Emmanuel Macron de ter como convidado de honra o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, no tradicional desfile de 14 de julho, nos Champs Elysées. Modi é um personagem tóxico. Mas é um bom cliente da tecnologia francesa: em fevereiro, a companhia aérea Air India assinou uma carta de intenções para comprar 250 aviões Airbus.

Poderia escrever sobre muitos assuntos da vida cultural francesa… Mas é urgente falar da destruição do planeta.

Ou melhor, a destruição de todas as formas de vida que ele passou milhões de anos a tecer, numa evolução lenta e fascinante.

“Nossa casa está em chamas e estamos olhando para o lado.”

Esta frase que se tornou famosa, frequentemente citada na França, foi lida por Jacques Chirac, em 2002, no seu discurso na IV Cúpula da Terra, em Johannesburg. Ela foi sugerida pelo historiador das ciências do meio ambiente, Jean-Paul Deléange, que lamentava, em entrevista de 2019, a inação dos políticos para limitar o aquecimento global, que avança catastrófico: “Chirac foi um dos primeiros presidentes a ter consciência do problema climático mas não fez muito para combater o aquecimento. Ele não soube se cercar de ministros à altura”.

Oceanos e montanhas de plástico

Na última segunda-feira, 29 de maio, começou na Unesco, em Paris, uma cúpula internacional de 175 países com o objetivo de elaborar um acordo multilateral até 2024. Sete anos depois da COP21 e do histórico Acordo de Paris, cerca de mil delegados e 1500 cientistas e representantes da sociedade civil se reunirão até dia 2 de junho com a missão de “pôr um termo à poluição plástica”.

É uma corrida contra o tempo levando-se em conta a ameaça que a poluição do plástico representa para os ecossistemas, a saúde humana e o clima: mais de 350 milhões de toneladas de dejetos plásticos são gerados por ano no planeta. E a produção mundial de plástico deve triplicar daqui a 2060, ultrapassando um bilhão de toneladas por ano.

A ONG Greenpeace, citada pelo jornal Libération, afirma que “é essencial para os grandes grupos do setor de combustíveis fósseis como Aramco, Total, Exxon e Shell investir maciçamente na produção petroquímica e plástica a fim de encontrar novos produtos. Enquanto os países reduzem sua dependência dos hidrocarburantes, programando a proibição de veículos a gasolina e diesel para breve, estas multinacionais enfrentam esta ‘incerteza existencial’ que o plástico vem cobrir”. E têm lucros gigantescos.

A matéria de capa do jornal do fim de semana informava que “o plástico se degrada no meio ambiente em micro e nanopartículas que poluem o ar, os solos, a água e todos os ecossistemas a tal ponto que todos nós ingerimos ao menos 5 gramas por semana, o equivalente de um cartão de crédito”.

A conferência em Paris pretende estabelecer um texto internacional sobre a poluição causada pelo plástico, na esperança de se ver livre deste flagelo que invade os oceanos e as terras.

Mais e mais petróleo

Enquanto isso, a empresa multinacional francesa de petróleo Total realizou 36 bilhões de euros de lucro em 2022, dos quais 9,4 bilhões foram distribuídos aos acionistas. Mas estes tiveram dificuldade em entrar na Assembléia Geral da empresa, realizada na semana passada em Paris. Dezenas de manifestantes bloquearam a entrada do edifício impedindo a passagem, até serem brutalmente deslocados por policiais CRS, especializados neste tipo de ação.

Nove personalidades religiosas (um ex-bispo, um rabino, um monge budista, uma pastora, um pastor protestante, entre outros) se amarraram em correntes vermelhas e brancas para protestar contra dois projetos petrolíferos da multinacional Total: um em Uganda e outro na Tanzânia. Recentemente, vi um documentário sobre os estragos ambientais e humanos que esses dois projetos vão causar e já estão causando desde agora, inclusive com deslocamento de populações e destruição de terras aráveis.

Para limpar sua imagem, a Total continua a fazer seu greenwashing investindo uma ínfima parcela de seus lucros em energias renováveis enquanto tem mais de 90% de seus investimentos em energias fósseis, esclarecem as ONGs que protestaram na entrada da Assembleia Geral.

O planeta pode se tornar inabitável, mas os governos seguem sob pressão de lobbies dos responsáveis pela poluição, que continuam a explorar o petróleo, o gás e o carvão, os principais responsáveis pelo aquecimento global.

Mudança de paradigma

Nosso planeta azul tem cada vez mais águas poluídas, ar irrespirável, temperaturas impróprias à vida humana, chuvas torrenciais, secas devastadoras, incêndios catastróficos de florestas e ciclones apocalípticos. E no futuro, tudo tende a se agravar.

Gaia, nossa mãe, vai se transformar mas continuará sua existência nessa galáxia que a vê dançar entre os outros planetas. Mas não é a terra que está ameaçada de extinção, dizem os cientistas. O planeta continuará a existir.

É a espécie humana que não terá futuro se não estancar seu modelo de dependência de combustíveis fósseis responsáveis pelo aquecimento global, se continuar consumindo no ritmo atual, fabricando lixo plástico no ritmo atual, produzindo carne bovina no ritmo atual e destruindo as florestas no ritmo atual.

O planeta está em mutação por ação do homem, que se vê frente à “urgência climática”, essa corrida contra o tempo para frear o aumento das temperaturas que desregulam todos os ecossistemas. Essa reconhecida ação do homem no aquecimento global gerou o termo “antropoceno” – popularizado no ano 2000 pelo químico holandês Paul Crutzen, vencedor do Prêmio Nobel de química em 1995 – para designar uma nova era geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra.

“É fundamental mudar de paradigma e sair da era dos combustíveis fósseis”, dizem todos os relatórios científicos, cada vez mais preocupados com a corrida vertiginosa para o abismo. O abandono dos combustíveis fósseis é a única forma de reverter o suicídio coletivo da humanidade.

Esse abandono total, por enquanto, é apenas uma meta.

Na França, os veículos elétricos serão os únicos a poder circular na próxima década. A maioria dos ônibus de Paris (empresa estatal RATP) já são elétricos. A partir de 2024 não será mais possível rodar na França com veículos de motor a diesel. O fim dos veículos a gasolina é previsto para 2030.

Esta semana, li um texto de Jean-Marc von der Weid, escrito em maio deste ano no qual ele escreve:

“Posso listar algumas das últimas notícias que ou nos levam a uma paralisia de ecoansiosos desesperados ou nos levam à ação para tentar evitar o desastre para o qual o homem caminha levando consigo todos os ecossistemas e suas espécies. Por muito tempo, adotou-se uma visão da economia voltada para a busca do crescimento econômico como a meta da sociedade, aquilo que eu chamo de “pibismo”. Nesta concepção, tudo o que favorece o crescimento do PIB é visto como positivo, independentemente de seus impactos ambientais, sejam eles o aquecimento global, a contaminação de águas e solos, a destruição da biodiversidade, entre outros. Antes do mundo científico acordar para os imensos riscos para o planeta provocados pelo crescimento econômico sem limites, tal visão ainda podia ser discutida. Hoje em dia, ela é um anacronismo perigoso.”

Ele prossegue criticando projetos de exploração de petróleo na foz do Amazonas e outras riquezas nas terras indígenas…

Esperemos que o Brasil acorde de uma vez por todas do sono profundo em matéria de meio ambiente.


*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.

Imagem: Poluição de plástico numa praia de Bali, publicada na semana passada pelo jornal Libération, de Paris.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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