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“Nós somos insetos”
“Nós somos insetos”
De Jorge Barcellos*
Frente a sua maior tragédia, a enchente, o Rio Grande do Sul sente na pele o efeito das políticas neoliberais de desmonte da máquina pública e flexibilização da legislação ambiental.
Na série da Netflix O Problema dos 3 Corpos, da autoria dos criadores de Game of Thrones, um grupo de cientistas tenta entender um mundo em desintegração. Na série, os San-Ti são alienígenas a caminho da Terra vindos de um planeta que fica a quatro anos-luz de distância condenado devido às condições climáticas e que tratam os seres humanos como espécie inferior e daí a frase final: para eles “Nós somos insetos”. No último episódio, entretanto, a mensagem é de otimismo porque o detetive Clarecen (Benedict Wong) traz uma nova ótica sobre essa visão. Ele afirma que ainda há muito trabalho a ser feito e é preciso buscar alternativas para a guerra que se aproxima. Se os humanos são insetos, eles são insetos poderosos, porque o que sabem fazer bem é se adaptar e sobreviver.
A realidade imita a ficção de formas muito diversas. No Rio Grande do Sul, a enchente se tornou o novo mundo, enquanto as autoridades de plantão se tornam nossos alienígenas. O governador Eduardo Leite manifestou desconforto com o excesso de doações, que “poderiam ameaçar o comércio local” e o diretor do Departamento Municipal de Água e Esgoto culpa falhas de um projeto robusto para ocultar a falta de manutenção das comportas. Aqui foram os cientistas os primeiros a fazerem alertas das enchentes que hoje atinge o Rio Grande do Sul que iniciaram no dia 21 de abril, mas o governador tinha “pautas mais importantes para tratar”. No dia 25, o METSUL apontou para a gravidade da enchente, que poderia bater os 300mm e chegar a bater o esperado para dois meses em 7 dias. Os alagamentos iniciam no dia 27 e no dia 3 de maio, o Guaíba bate 5,3 metros. A maior catástrofe da cidade foi em 1941, com Guaíba chegando a 4,73m.
Não foram apenas os cientistas que avisaram. A própria natureza deu o aviso: em 2023 foram 3 grandes enchentes, mas isso não foi suficiente para as autoridades investirem no sistema de proteção, pois o departamento da área fechou com 428,9 milhões em caixa. Desde então iniciaram-se duas narrativas: a primeira, de esquerda, que critica o abandono das estruturas de proteção pelo governo municipal, a ausência de manutenção de equipamentos como comportas e casas de bombas que se soma, a nível estadual, a política de desmonte da legislação ambiental. E a segunda, de direita, que diz que “não é hora de apontar culpados”, esforço dos governos estadual e municipal em isentarem-se de eventuais responsabilidades na tragédia. A direita reforçou sua narrativa recentemente, quando o diretor do DMAE veio a público afirmar que houve problema de projeto no sistema de proteção, desqualificando-o. O vice-prefeito de Porto Alegre, segundo o site do ICL notícias é negacionista climático, já que atua na produtora Brasil Paralelo (https://abre.ai/jMBc). Some-se a isto a declaração, pelo poder executivo municipal, da contratação da consultoria Alvarez & Marsal, criticada por especialistas por se tratar de empresa especializada na reestruturação de empresas e que teve a atuação de Sérgio Moro como sócio-diretor alvo de investigação do Tribunal de Contas da União. Por não ouvirem os cientistas, agora as autoridades se blindam.
O Rio Grande do Sul vive sua maior tragédia. Hoje, governo, voluntários, empresários e cidadãos lutam para salvar vidas. Um movimento nacional de apoio às vítimas está em andamento ao mesmo tempo em que se debate as causas da tragédia com narrativas em confronto. Entre o trabalho de salvamento em andamento, as críticas ao projeto neoliberal dos governos estadual e da prefeitura de Porto Alegre que teriam agudizado a catástrofe, a frase enunciada em O problema dos 3 corpos tem um sentido. Sim, frente a tragédia, os gaúchos parecem insetos. Os drones não cessam de sobrevoar do alto as cidades e bairros atingidos e a imagem são de cidadãos. Como Clarence, sabemos que estamos em guerra e da mesma forma, lutamos para sobreviver. Resta a pergunta: estamos em guerra contra quem? Parece ser uma guerra contra o meio ambiente, mas não é. É uma guerra contra o capital. Onde o filósofo e arquiteto Paul Virilio (1932-2018) em sua obra Guerra Pura (Brasiliense, 1984) vê a máquina de morte por detrás da aventura tecnológica, eu vejo a armada pelos grandes detentores do poder econômico. Os alienígenas sempre estiveram entre nós, eles se desenvolveram ao longo de nossa história nos últimos 400 anos e continuam exercendo seu poder sobre o Estado, sobre nossas políticas públicas: no momento exato em que o Rio Grande do Sul passa por sua maior tragédia climática, a maior também do Brasil, os senadores da Comissão de Constituição e Justiça discutem a aprovação do projeto que reduz a reserva legal da Amazônia e que representa o potencial de desmatamento de cerca de 281.661 km2 e os deputados federais aprovam a criminalização dos movimentos sociais, especialmente os dos moradores sem teto. O primeiro, se aprovado, terá repercussão climática mundial; o segundo, já pune as vítimas da tragédia gaúcha. No seriado, os habitantes temem o massacre que virá em 400 anos pelos San-ti. Em nossa realidade esse massacre já começou porque nada importa para a política neoliberal, que sempre assume a forma de um massacre: do processo de uberização que massacra o trabalhador à expansão imobiliária que massacra o território das cidades e desta a redução da legislação que proteção que massacra a proteção ao meio ambiente, é sempre um processo de destruição em escala geométrica e não de produção de que se trata.
Não é preciso uma catástrofe climática para reconhecer que já vivíamos sob o Estado de Emergência. As sucessivas enchentes que atacaram o estado foram efeito da crise climática que encontra suas raízes no movimento de expansão do capital feito às custas da destruição do mundo natural. Não foi o que aconteceu na tragédia de Brumadinho e Mariana? Tragédia anunciada, combinação de alta exploração da natureza e ausência de políticas de prevenção de acidentes pelo capital e pelos órgãos públicos, que não gostam de controle de riscos, de investimento em cuidado, pois é um custo que reduz seu lucro, seus recursos. A natureza protegida não permite a maximização do capital, daí a exploração imobiliária em direção à zona sul da cidade, que termina, de uma vez por todas, com a nossa defesa contra as águas, como no projeto da Fazenda do Arado, vitorioso mesmo sob críticas dos ambientalistas. Para o capital, a natureza tem de morrer. Pensávamos que, para fugir de nossas cidades ruidosas, poluídas, com enchentes e sem condições de vida humana digna, deveríamos ir para as cidades do interior. Na era da generalização da catástrofe, cidade e campo, capital e interior, por todo o lugar, o capital já estava lá fazendo todo o serviço: de conjuntos habitacionais nas encostas dos morros ao abandono do investimento em estruturas de proteção, em tudo há o dedo de corporações, dos detentores do dinheiro. A tragédia ocorre porque frente ao capital, somos incapazes de nos proteger.
Virilio tem razão em afirmar que em cada área da vida contemporânea está o horizonte da guerra. É exatamente assim com as chuvas que atingem o Rio Grande do Sul neste momento. A começar pelo lugar onde as autoridades organizam seus esforços para diminuir os efeitos dos temporais, chamados de “bunker”. A guerra não é apenas feita de fortificações, bases submarinas, há outros pontos de referência. Diz Virilio: “A natureza totalitária da guerra [é] no espaço e no mito”. O espaço é o geográfico, o Guaíba, a Lagoa dos Patos, a fronteira lacustre de Porto Alegre. O mito é a política, a ideia de que nossos governantes são heróis pelo esforço que fazem para a proteção dos cidadãos e que “não é hora de apontar os culpados”, como dizem inúmeras autoridades. Thiago Amparo, em seu artigo “No RS, é hora de apontar o dedo” (FSP, 8/5/2024), enumera os culpados: o prefeito de Porto Alegre que destinou zero real em 2023 para prevenção contra enchentes, recusou a contratação de 443 funcionários para o Departamento Municipal de Água e Esgotos que, desde o ano passado foi cortado pela metade; o governador do Estado, pelo atraso de três dias na comunicação sobre a tragédia iminente, pela desfiguração da lei ambiental do estado, pela criação do perverso auto licenciamento ambiental privado e pela autorização de barragens em áreas de preservação; e o atual presidente do país, por não ter liberado o Sistema de Alerta de Desastres e não defender a redução da exploração de combustíveis fósseis. Todos têm sua digital marcada no desastre.
A narrativa que quer desqualificar o projeto de proteção da cidade é mais do artifício denunciado por David Michaels em O triunfo da dúvida (Editora Elefante, 2024). Se nos Estados Unidos, eram as corporações privadas que usavam de estratagemas para postergar avaliações, julgamentos e responsabilizações por parte do Estado dos danos de seus produtos com a contratação de consultorias especializadas, aqui é o município que adota esta estratégia de defesa e postergação de seu julgamento público: o Ministério Público do Rio Grande do Sul já anunciou que irá investigar as causas e consequências da enchente, o que ligou o sinal de alerta nas autoridades. Ligia e Décio Botta, casal que acompanhou de perto a construção do Sistema de Proteção contra as Cheias é categórico: “o estudo era muito valorizado. Ele previa até um episódio parecido ocorreria entre 80 e 100 anos”, diz Ligia Botta. O estudo era de 1966 e tinha especialistas alemães. Entendo que acertou precisamente na projeção da altura do muro e o tempo para uma nova enchente. Segundo o casal, as obras foram muito bem construídas e bem distribuídas levando em consideração as necessidades e a topografia de cada área mas foi “essa falta de manutenção acabou resultando no retorno da água. Com a manutenção a história poderia ter sido diferente” (Correio do Povo, 11/5/2024)
Hoje agentes de estado e sociedade civil fazem hoje o maior trabalho de salvamento imaginado no país. E fazem da melhor forma que podem, mas é preciso aprender com a tragédia enquanto ela ocorre. As condições que agudizaram a enchente foram produzidas porque não foram respeitados os alertas de estudiosos, os pareceres técnicos e as manifestações de servidores. Se não devemos apontar responsáveis agora, pois o objetivo é salvar as vítimas, uma vez passado a crise e iniciados os trabalhos de recuperação, será preciso refletir sobre as consequências das políticas neoliberais porque elas fazem parte integrante da tragédia e reconhecer que os mesmos atores que, de forma indireta, colaboraram para agudizar a catástrofe que se abateu no estado, foram os mesmos que organizaram o salvamento da população. Eles deverão fazer seu mea-culpa: cederam aos interesses do agronegócio e do capital imobiliário, facilitaram o afrouxamento do ordenamento legal, desprotegeram o mundo humano e natural e seguiram à risca o mote que diz “precarizar para privatizar”.
Na verdade, agora não é hora de apontar culpados porque é a hora da sua expiação, a tentativa de sua reconciliação com a sociedade e, portanto, momento de seu sacrifício real pelo trabalho e simbólico por seu sacrifício pela culpa. Como vítimas expiatórias da catástrofe, as autoridades tem a possibilidade de interromper o processo de destruição do qual fazem parte se reconhecerem o círculo vicioso das políticas neoliberais da qual participam, possibilitando dar origem a novas políticas, tanto no Estado quanto no Município. Nos termos de René Girardi, em seu A Violência e o Sagrado (Paz e Terra, 1990), é preciso que recaia sobre as autoridades a responsabilidade, isto é, que se encontrem na categoria “sacrificável”, onde caem todos os males do social. Em termos de ritual político, as próximas eleições são a oportunidade de a sociedade purificar seu Estado. Segundo Rodrigo Dantas, em reportagem ao jornal O Globo, o eleitor tende a punir os governantes nas urnas (O globo, 22/5/2024). Esta é a razão pela qual o governador tem insistido no adiamento das eleições, para que o povo esqueça o que aconteceu. O problema é que, neste sacrifício político, não há apenas vítimas políticas, mas toda uma sociedade. E elas tem memória.
A expiação é o castigo que as autoridades tem de enfrentar por participarem da tragédia pois a catástrofe não começou no dia das chuvas somente: ela começou quando ambos os governos adotaram políticas neoliberais. Onde estavam nossos governantes quando deveriam ter feito investimentos em políticas de proteção? Onde estavam nossos governantes quando deveriam destinar recursos para Defesa Civil? Reportagem do site ICL Economia afirma que o item do orçamento da prefeitura de Porto Alegre “Melhoria contra as cheias” não recebeu recursos e que tema não aparecem nem no programa do prefeito e do governador (https://abre.ai/jMBj). É por essa razão que a barreira de proteção estava do jeito que estava? O que fizeram as autoridades depois das chuvas de setembro? Estas perguntas foram repetidas também pelos vereadores as autoridades locais e foram feitas por políticos de situação e oposição na sessão da Câmara Municipal do último dia 21 de maio. Minha resposta é que estavam ocupados garantido condições para a expansão do capital.
Como cidadão, estou indignado. O dano poderia ter sido reduzido. Nossos governantes são incapazes de agir em relação ao mínimo da segurança de seus cidadãos. No Japão, ações educativas fazem a prevenção de desastres. Aqui, os moradores de bairros atingidos pelas águas muitas vezes recusam-se a sair de suas casas. Um bom programa educativo comunitário poderia ter feito a diferença. No futuro próximo, para começar, depois de preservar as vítimas e reconstruir a cidade, precisamos voltar a discussão do Plano Diretor para incluir programas preventivos em todos os níveis. Às vésperas das eleições, a prevenção será o elemento que fará a diferença nos programas eleitorais. E então, deixaremos de ser insetos frente a magnitude dos desastres naturais e retornaremos a condição de cidadãos nas eleições, culpando com o ostracismo político os responsáveis pela tragédia.
*Doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores)
Imagem: Pixabey
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