?>

Opinião

Nordeste X Sudoeste? Para além das aparências na Geografia do Voto das Eleições 2022

Nordeste X Sudoeste? Para além das aparências na Geografia do Voto das Eleições 2022

Artigo por RED
19/02/2023 05:30 • Atualizado em 21/02/2023 23:21
Nordeste X Sudoeste? Para além das aparências na Geografia do Voto das Eleições 2022

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Um consenso ronda a nação, o dos dois Brasis: o nordeste progressista e o sudoeste conservador. Se olharmos para a Figura 1, abaixo, veremos que este consenso está longe de ser gratuito. As áreas cobertas por vermelho correspondem aos municípios onde Lula obteve a maioria (simples ou absoluta) dos votos no primeiro turno. As áreas preenchidas por azul correspondem aos municípios onde Bolsonaro obteve a maioria dos votos.

 

Desde logo, três pontos chamam a atenção: 1) a polarização eleitoral: nenhum município do Brasil está hachurado de outra cor, vale dizer, nenhum município deu vitória aos candidatos da “terceira via”; 2) são raríssimos e pequenos os pontos “azuis” na região de hegemonia lulista: norte de Minas Gerais, em toda a macrorregião Nordeste, em Tocantins, no norte do Pará e no Amazonas, denotando grande homogeneidade do voto pró-Lula neste amplo território; 3) a região de hegemonia bolsonarista também é vasta, situa-se à sudoeste do país, mas é menos homogênea do que a região “lulista”: emergem manchas vermelhas de tamanho não desprezível na Metade Sul do RS, no sudoeste do PR, no Pantanal do Matogrosso, bem como em pontos que, a despeito de menores em termos espaciais, apresentam elevadíssima densidade demográfica e representatividade eleitoral, tais como a Região Metropolitana de São Paulo e, no RS, em municípios como Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, Bagé, Santa Maria, Alegrete, São Borja, etc. Voltaremos a analisar estas aparentes “anomalias do voto sudoestino” mais adiante. Antes, porém, voltemo-nos para outra dimensão da geografia eleitoral de 2022: o voto proporcional para a Câmara dos Deputados.

Com vistas a simplificar esta análise, classificamos os 22 partidos que alcançaram representação na Câmara Federal (CF) no mandato 2023/26 em quatro “blocos”. O primeiro é o “bloco de esquerda”, composto pelos 9 partidos que apoiaram a chapa Lula-Alckmin já no primeiro turno: PT, PCdoB e PV (Federação Brasil Esperança), PSOL e Rede (também federados), PSB, Avante, Solidariedade e PROS. Este bloco conquistou 122 cadeiras na CF. O segundo grupo – “bloco bolsonarista – é composto pelos 3 partidos que apoiaram a candidatura do capitão (PL, PP e Republicanos) mais o PSC e o Patriota que, a despeito de não terem formalizado apoio a Bolsonaro, funcionaram como base parlamentar de seu governo ao longo de todo o seu mandato. Este bloco conquistou 198 cadeiras na CF. O terceiro bloco é composto pelos partidos que deram sustentação aos dois candidatos da terceira via (Simone Tebet e Ciro Gomes) que, no segundo turno (com maior ou menor empenho) apoiaram a chapa Lula-Alckmin. Estes partidos são MDB, PSDB, Cidadania, Podemos e PDT, que conquistaram 89 cadeiras na CF. Chamaremos este terceiro bloco de “terceira via progressista”. Por fim, temos o bloco da “terceira via conservadora”, composta pelos partidos que apoiaram Soraya Thronicke (União Brasil) Felipe D’Avila (Novo), bem como o PSD de Kassab. Estes três partidos se abstiveram de apoiar qualquer candidatura no segundo turno, mas suas bases eleitorais são essencialmente pró-Bolsonaro. Sem seus votos, Bolsonaro não teria alcançado a performance que alcançou no segundo turno. Este bloco obteve 104 cadeiras na CF. No Quadro 1, abaixo, apresentamos o desempenho destes 4 blocos em cada Unidade da Federação.

Tomemos, inicialmente, a distribuição dos candidatos eleitos do “bloco de esquerda” por região. A região Centro-Oeste (C-O) foi responsável por 6 dos 122 deputados eleitos por este bloco (4,92%). Esta percentagem é pequena, mas é preciso lembrar que a representação global do C-O é a menor do país, correspondendo a 45 deputados federais (8,77% do total). Dessa forma, os 6 deputados do “bloco de esquerda” perfazem 14,63% do total dos eleitos. Mais: correspondem a 25% do total de eleitos pelo Distrito Federal (DF) e 25% do total do Mato Grosso do Sul. Alguém poderia alegar que esta percentagem ainda é baixa. E, de fato é. Mas a expressão de uma dada percentagem é função da comparação. Perto da macrorregião Norte (NO), o desempenho do “bloco de esquerda” no C-O é excepcional.

A despeito de contar com 65 deputados (12,67% da CF), a região NO elegeu apenas 2 dentre os 122 deputados do “bloco de esquerda”: 1,64% dos deputados deste bloco e 3,08% de toda a bancada da região norte. Note-se que, para além dos estados do Nordeste, os únicos dois estados em que Lula-Alckmin obtiveram mais de 50% dos votos no primeiro turno foram Pará e Tocantins, ambos da NO. Além disso, no Amazonas Lula obteve 49,58% dos votos no primeiro turno e, no Amapá, a percentagem foi de 45,67%. Não obstante, apenas o Pará elegeu deputados do “bloco de esquerda”, ambos do PT.

É bem verdade que, se tomamos o “bloco bolsonarista”, o C-O aparece como uma região mais conservadora do que o Norte: 48,78% dos deputados desta região são dos partidos da base do ex-presidente, em contraste com 40% no Norte. Porém, mais uma vez é preciso ir devagar com o andor. E isto porque a “terceira via conservadora” obteve apenas 12,2% dos votos proporcionais no C-O, contra 27,69% dos votos no NO. Além disso, se a “terceira via progressista” alcança um desempenho um pouco melhor no NO, é preciso avaliar com cuidado quão progressista ela é. Sabemos bem que a inflexão política dos representantes de partidos centristas (como o MDB, hegemonizado pelo clã Barbalho no Pará) está longe de ser homogênea e, muitas vezes, guarda pouco ou nada de progressista.

Num primeiro momento, o desempenho do Nordeste na eleição para a CF parece mais consistente com o voto presidencial: 1/3 da bancada nacional do “bloco de esquerda” tem por origem esta região. Mas este valor se explica em parte pelo tamanho absoluto da representação desta região: 151 deputados, 29,43% do total. Se tomamos a participação dos eleitos no “bloco de esquerda” apenas na bancada do NE, o percentual mostra-se mais modesto 27,15%. Esta percentagem é inferior à representação bolsonarista da bancada nordestina: 37,75%. Somada à “terceira via conservadora”, temos 61,59%: quase 2 em cada 3 deputados da representação do NE na CF está no campo da direita. Alguns casos são muito reveladores desta discrepância entre o voto majoritário e proporcional. Dos 12 deputados a que a Paraíba faz jus, 9 dentre os eleitos são do “bloco bolsonarista”, 1 é da “terceira via conservadora” e apenas 2 do “bloco de esquerda”. Note-se que já no primeiro turno Lula havia obtido 64,21% dos votos nesta UF. No Sergipe (onde Lula fez 63,2% dos votos no primeiro turno), os blocos “bolsonarista e terceira via conservadora” fizeram 87,5% da bancada estadual, cabendo um único deputado ao “bloco de esquerda”. Mesmo na Bahia – responsável pela eleição de Lula, ao superar isoladamente a diferença pró-Bolsonaro da soma das 26 outras UFs no segundo turno – a performance do “bloco de esquerda” foi apenas razoável. Esta UF elegeu 12 deputados de primeiro. Mas faz jus a 39 representantes e elegeu 10 deputados do “bloco bolsonarista” e 12 deputados da “terceira via conservadora”. O mínimo que podemos dizer é que, no Nordeste, o voto em Lula não vem acompanhado, necessariamente de um voto em candidatos de esquerda no plano mais geral.

Avancemos agora para o Sul. Dos 77 deputados a que fazem jus PR, SC e RS, 18 (23,38%) são de partidos incluídos no “bloco de esquerda”. Esta percentagem, contudo, é viesada pelo voto catarinense, UF que, já no primeiro turno, deu 62,21% dos votos a Bolsonaro. Se tomamos apenas o RS, vemos que 9 dos 18 deputados do “bloco de esquerda” foram eleitos nessa UF, o que representa 29,03% da bancada gaúcha, uma percentagem maior do que a média do NE. Além disso, o Sul se destaca por ser a região com menor percentagem nacional (dentre as macrorregiões) de votos em candidatos dos partidos do “bloco bolsonarista”: 32,47% (percentagem que, mais uma vez, é puxada para cima por SC).

O Sudeste, por sua vez, é responsável por 45,08% da bancada nacional do “bloco de esquerda”: 55 em 122 deputados. Esse resultado é indissociável do fato desta ser a região com maior colégio eleitoral: faz jus a 179 deputados. Mas não é só isso: o “bloco de esquerda” corresponde a quase um terço da bancada total do Sudeste (30,73%), a percentagem mais alta de todas as macrorregiões. Mais ainda: a representação de alguns partidos do bloco de esquerda assenta-se quase que integralmente nos três maiores colégios eleitorais, SP, RJ e MG: 91,6% da bancada do PSOL; 71,4% do Avante; 75% do Solidariedade; 100% da bancada do PROS; e 50% da bancada da Rede é composta de deputados eleitos nestes estados. Em suma: sem as UFs que elegeram Zema, Tarcísio e Castro como governadores estaduais, tanto a expressão numérica do “bloco de esquerda” da Câmara Federal seria menor (cairia de 122 para 69 deputados), como sua diversidade interna seria ínfima, pois partidos como PSOL, Avante, PROS e Rede não subsistiriam enquanto organizações viáveis dentro das cláusulas de barreira vigentes atualmente.

A Geografia do voto para a Câmara Federal revela um país muito mais complexo e heterogêneo do que aquele que emerge de uma análise circunscrita à eleição presidencial. Ela traz à luz um Nordeste e um Norte mais conservadores e um Sudeste, um Sul e um Centro-Oeste menos conservadores do que mapa do Brasil na Figura 1 insinua.

Alguém poderia contra argumentar que o voto para o executivo e o voto para o legislativo seguem lógicas distintas, e que é o voto para Presidente que melhor traduz o perfil político-ideológico do território. Se nos permitem uma “dialética simples”, diríamos que este contra-argumento é e não é legítimo. Ele é legítimo no sentido de que a opção do eleitor por este ou aquele candidato do legislativo é mediada por determinações que transcendem, em muito, o perfil ideológico do partido ao qual o candidato se vincula. Elementos como conhecimento pessoal, território de origem, benefícios esperados para a região, para si e/ou para o setor econômico em que o eleitor atua são tão ou mais importantes do que a inflexão ideológica do candidato e de seu partido.

Sem dúvida, este ponto é importante e verdadeiro. Não é gratuito que, volta e meia, ideólogos e políticos conservadores resgatem o projeto do parlamentarismo no Brasil. As eleições presidenciais têm uma dimensão “plebiscitária”, onde são contrapostos dois projetos; como regra geral, um projeto à esquerda (mais intervencionista, industrializante e distributivo) e um projeto à direita (de inflexão liberal, privatizante e avesso às políticas públicas de distribuição de renda). Num país excludente como o Brasil, em regimes democráticos a tendência é a vitória da esquerda. Daí a recorrência de golpes (como em 1954, 1964, 2016-2018) com vistas a recolocar a direita no poder. O projeto de parlamentarismo busca eliminar a dimensão plebiscitária da eleição presidencial sob o pressuposto de que o eleitorado continuará elegendo um Câmara por critérios “clientelísticos”, por oposição a critérios especificamente utópico-ideológicos.

Não obstante, há, também, um outro lado na questão. Como bem argumentou Putnam em seu Comunidade e Democracia, uma das principais expressões da cultura política oportunista do sul da Itália em contraste com o elevado capital social do norte encontra-se no padrão de voto: clientelista no sul e utópico-ideológico (partidário) no norte. Vale dizer: um voto nas eleições proporcionais que se assenta primariamente em relações pessoais e em interesses profissionais e/ou em benefícios locais não é, necessariamente, a norma. Votar em um candidato pelo que ele “prometeu fazer para mim” é, também, uma opção política. E ela comporta uma dimensão oportunista e conservadora.

Por fim, o fato de que o voto para Presidente tenha uma dimensão plebiscitária e seja marcado, fundamentalmente, por elementos utópico-ideológicos, não o torna isento de elementos de interesse pessoal e regional. Lula é nordestino e tem compromissos claros com o enfrentamento de desigualdades regionais e a promoção do desenvolvimento socioeconômico do Nordeste em todos os níveis: da infraestrutura (transposição do Rio São Francisco, Luz para Todos, Água paraTodos, etc.) aos serviços de saúde (qualificação do SUS, Samu, etc.) e educação (interiorização das Universidades e Escolas Técnicas Federais, Pronatec, etc.). E, do nosso ponto de vista, tais compromissos explicam uma parcela não desprezível do “lulismo” nordestino (e nortista) por oposição ao “anti-lulismo” do sudoeste.

Por oposição, o Brasil que votou em Bolsonaro é, fundamentalmente, o Brasil já incluído e que teme um Estado forte e redistributivo. Esse ponto fica muito claro nas “manchas vermelhas” nas UFs da Região Sul, Sudeste e Centro-Oeste. No RS, Lula teve maioria dos votos na Metade Sul, caracterizada pelo latifúndio e pelo baixíssimo dinamismo econômico. No PR, a grande mancha vermelha encontra-se no centro do Estado, em torno de Guarapuava, a mais pobre e menos industrializada desta UF. Em MG, a mancha vermelha encontra-se no norte e nordeste da UF, também ela a mais pobre e carente de políticas governamentais de apoio ao desenvolvimento regional. No Centro-Oeste a região lulista é a região do Pantanal, que apresenta o mais baixo IDHM e a mais baixa produtividade por unidade de área das UFs de MT e MS. O “lulismo” destas regiões não parece se assentar em qualquer hegemonia político-ideológica da “esquerda”, mas na crença de que são necessárias políticas públicas de apoio à geração de emprego e de investimentos públicos federais nos territórios com vistas ao enfrentamento da estagnação econômica. Nem mesmo São Paulo capital e as cidades mais industrializadas do entorno parecem fugir a esta regra geral: o processo de desindustrialização em curso no país desde o Plano Real está afetando de forma particularmente intensa aquele que foi o centro industrial da nação. Sem ser um território de baixo IDHM ou estagnado, a RMSP é economicamente decadente no Brasil: perde participação no PIB e no VAB nacional a cada ano que passa. Também ela precisa de políticas públicas ativas para restaurar seu dinamismo e políticas sociais voltadas ao enfrentamento do desemprego.

Evidentemente, nossa intenção aqui não é negar a inflexão à esquerda do Nordeste. Todos os progressistas brasileiros têm uma dívida política com esta região do país, que nos salvou de mais 4 anos de desgoverno Bolsonaro. Nossa intenção é apenas alertar que o país é muito mais rico e nuançado e não cabe num modelo de “dois Brasis”: o conservador Sudoeste versus o Nordeste progressista. Sem o Sul e o Sudeste, a bancada do “bloco de esquerda” da Câmara Federal corresponderia a meros 40% do que ela é hoje. De sorte que também vale saudar e agradecer a importante contribuição política dessa região para o enfrentamento cotidiano (que transcende o momento eleitoral) do fascismo “à brasileira”.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Toque novamente para sair.