Opinião
No Fio da Navalha?
No Fio da Navalha?
De LISZT VIEIRA*
O relativo desânimo que se abateu sobre boa parte dos eleitores de Lula após o resultado da eleição se explica principalmente pela expectativa de vitória no primeiro turno, considerada possível pela grande maioria das pesquisas de opinião divulgadas na mídia. Passado o susto inicial, torna-se possível começar a refletir sobre o quadro político que se desenha à nossa frente.
Com 48%, Lula teve uma performance eleitoral excelente. Pela primeira vez, um candidato à reeleição ficou arás do candidato da oposição. Creio que as pesquisas não captaram devidamente o peso da “máquina” do poder, entendendo-se por isso não apenas os governadores, deputados, prefeitos e vereadores pelo Brasil afora, mas principalmente os recursos financeiros liberados pelo orçamento secreto. Ninguém sabe quem recebeu, quanto recebeu e para onde foi o dinheiro.
Para o Congresso, as notícias alarmantes da eleição de parlamentares bolsonaristas e/ou de extrema direita, como, entre outros, o ex astronauta Marcos Pontes e Ricardo Salles em São Paulo, Mourão no RGS, Moro e /Dallagnol no Paraná, Damares em Brasilia, Romário e o general Pazuello no Rio, Magno Malta no Espírito Santo etc., se contrapõem às boas notícias como, por exemplo, o PT saiu de 54 pra 67 deputados federais, o PSOL elegeu a maior bancada da sua história, com 14 deputados federais. Boulos foi o deputado federal mais votado de São Paulo. E muitos líderes de extrema direita perderam a eleição, como Eduardo Cunha, Queiroz, Janaina Pascoal etc. Força é constatar, ainda, que o PSDB, já sumido como partido nacional, desaparece também com partido regional com a derrota de Rodrigo Garcia para governador em SP e a fraca performance de Eduardo Leite no RS que chega enfraquecido no segundo turno.
A questão principal é reconhecer a evidência: Lula deve ganhar a eleição, está na frente e tudo indica que vai conquistar os 1,5% dos votos que faltam com novos apoios, entre eles a Simone Tebet e de setores liberais assustados com a ameaça autoritária do bolsonarismo. Claro que isso exige esforço e luta política para reforçar a candidatura Lula e enfraquecer o candidato neofascista.
A vitória de Lula é mais do que provável. Vai se colocar depois uma grande questão sobre a governabilidade. Muitos estão assustados com a presença de novos parlamentares de extrema direita no Senado e na Câmara. Temos de levar em conta, porém, que nem todos têm perfil ideológico coerente. O Centrão, por exemplo, apoia qualquer governo e alguns parlamentares eleitos pela direita também podem compor com o futuro governo Lula, são vazios de substância política, como o senador Romário, do RJ.
Será necessário ter uma política para lidar com a oposição bolsonarista. Bolsonaro nos deixa uma preciosa lição: cerca de 35% a 40% do eleitorado brasileiro aceitaria um regime autoritário de natureza neofascista. Entre eles, a maioria dos militares brasileiros, pelo que consta. Esse contingente de eleitores identificados com B. fará oposição ao futuro governo Lula dentro das regras legais previstas na Constituição? Ou partirão para ações violentas a fim de provocar tumultos?
Provavelmente, tudo vai depender da liderança. Sem um forte líder, o fascismo sobrevive, mas vai hibernar e ficar adormecido na sociedade. Tenho dúvidas se Bolsonaro, fora do poder, terá essa capacidade de liderança política.
Mas o que está agora na ordem do dia é a campanha do segundo turno. Foi correto construir a frente ampla, e ela deve ser ampliada. Simone Tebet, provavelmente, apoiará Lula. Ciro é carta fora do baralho, os ciristas fizeram voto útil em Bolsonaro e Ciro agora desaparece. O PDT – espera-se – deve apoiar Lula. A questão é que não basta fazer alianças “por cima”, embora elas tenham efeito político e simbólico. Será necessário atacar “por baixo” para atingir as bases de apoio bolsonaristas.
No RJ, por exemplo, uma aliança espúria entre milícias, milicos e evangélicos turbinou a votação de Bolsonaro e garantiu a vitória de Castro no primeiro turno. O caso do Rio de Janeiro é peculiar. No frigir dos ovos, a campanha de Freixo foi abandonada pelos partidos. Pelo PSB, que só apoiou Molon para senador; pelo PT, em represália ao fato de o PSB não ter aceitado reciprocidade e apoiado o candidato ao senador do PT, André Ceciliano, e pelo PSOL que só cuidou de seus candidatos a deputado.
A esquerda teve vitórias expressivas em todo o Nordeste, elegeu governadores no Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte, e disputa com chances na Bahia e Sergipe. Mas aprendemos com essa eleição que o Brasil é um país mais conservador do que imaginávamos. O discurso de Lula na campanha de segundo turno terá de ser menos saudosista e mais programático, com propostas concretas que possam sensibilizar setores não fascistas de classe média que votaram Bolsonaro. Na área tributária, por exemplo, quem ganha por mês 5 mil reais ou 1 milhão paga a mesma alíquota. Propostas concretas e acessíveis de reforma tributária, entre outras, podem ganhar votos na classe média.
Finalmente, destacamos aqui uma questão que não foi devidamente levada em conta nas análises da eleição. Enquanto a abstenção permaneceu na média das duas últimas eleições para presidente, pouco mais de 20%, no que se refere aos votos brancos e nulos, a taxa baixou em torno de 50%. De cerca de 8% para 4%. Esses votos provavelmente migraram para Bolsonaro.
Considerando que a vitória de Lula é provável, vai se colocar de imediato a necessidade de combater o conservadorismo neofascista que deve sobreviver em modo repouso até encontrar uma liderança mais competente do que Bolsonaro. Em vários países, na Europa e principalmente nos EUA, avança uma mentalidade obscurantista que nega a herança racional da era moderna combatendo o método e as conclusões da ciência. É assustador o número de pessoas que rejeitam a vacina nos EUA, por exemplo.
Para matar o ovo da serpente que, entre nós – e não só – já quebrou a casca, a vitória de Lula se reveste de importância fundamental. Além das prioridades normais do Governo nas áreas de economia, educação, saúde, ciência, cultura, meio ambiente etc., será importante desenvolver uma política de democratização e modernização desse grande contingente conservador e preconceituoso da sociedade, a começar pelas Forças Armadas que ainda respiram o clima da guerra fria e da doutrina de segurança nacional da ditadura militar que via no povo o inimigo interno a ser combatido.
Como vemos, o futuro Governo Lula terá pela frente a enorme tarefa de enfrentar os problemas complexos das crises domésticas e internacionais, reconstruir as instituições democráticas da república destruídas pelo atual governo e fertilizar com as sementes democráticas as estéreis camadas conservadoras e neofascistas que permanecem vivas em 40% da sociedade brasileira.
*Formado em Direito e Ciências Sociais, professor universitário, foi político brasileiro, ligado ao movimento ambientalista.
Imagem em Pixabay.
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