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Opinião

No dia em que o Criador terceirizou a portaria do céu

No dia em que o Criador terceirizou a portaria do céu

Artigo por RED
14/09/2022 21:50 • Atualizado em 16/09/2022 00:58
No dia em que o Criador terceirizou a portaria do céu

De EDELBERTO BEHS*

São Pedro começou a mostrar sinais de cansaço. Reclamou diante o Senhor o aumento de serviço na portaria do céu depois que o planeta Terra sofreu o impacto da pandemia do Covid-19 e com as guerras e brigas entre povos e facções em diferentes partes do mundo.

Ele teve uma ideia e apresentou-a ao Senhor:
– Pai, vamos terceirizar a portaria do céu. A novidade só trará vantagens. Posso dispensar o exército de anjos que me acompanha na identificação dos que vêm até nós, vamos poder descansar mais e prestar melhor assistência a outras áreas do jardim, como é o caso da moradia dos nossos hóspedes.

O Senhor achou a ideia um tanto estranha. Isso não estava previsto no planejamento quando resolveu criar o paraíso. Mas, enfim, com tantas mudanças que estava observando por conta de iniciativas das criaturas introduzidas na Terra resolveu acatar a sugestão de Pedro.

Passado o processo de instalação da empresa terceirizada, finalmente Pedro e anjos puderam se recolher. Deitados em redes, à beira-mar, acompanhavam as novidades na portaria por imagens recebidas em seus celulares através de câmaras instaladas em circuitos internos.

O primeiro “hóspede” alcançou o céu, bateu à porta na entrada e foi recepcionado por uma voz pelo interfone:
– Bom dia, você está chegando ao céu. Digite 1 se quiser ingressar no céu; digite 2 se quiser visitar algum parente; digite 3 se quiser conversar com algum conhecido; ou aguarde para falar com um de nossos atendentes.

Evidente, o recém-chegado queria ingressar no céu, afinal partira da Terra para o melhor. Digitou, pois, o 1.

– Para entrar pelo portão precisamos checar algumas informações e ver como foi sua vida na Terra. Informe seu nome, data de nascimento, CPF e senha. Essa conversa está sendo gravada.

– Senha, mas como, senha? Não recebi nenhuma senha. O pároco realizou uma cerimônia de despedida muito emocionante, falou bonito, consolou minha família, mas não me passou senha nenhuma.

– Sem senha não é possível acessar o céu. Volte para a Terra e aguarde que vamos lhe enviar uma mensagem informando um número de acesso para o senhor recuperar sua senha, informou uma voz metálica.

Lá se foi o pobre mortal, fez todo o caminho inverso até o planeta. Sentou-se junto ao túmulo e esperou, com celular na mão, receber o tal número de acesso para a recuperação da senha. Finalmente veio o código. O atrapalhado do “vivente” tinha apenas dez segundos para gravar o código e digitá-lo no portal de recuperação de senhas do céu.

Depois da quinta tentativa, e com papel e lápis na mão para copiar a tempo o novo código, ele finalmente conseguiu recuperar a senha. Dirigiu-se, satisfeito, ao céu. Bateu no portão e, de novo, aquela voz metálica no interfone:

– Boa tarde, você está chegando ao céu. Digite 1 se quiser ingressar no céu; digite 2 se quiser visitar algum parente; digite 3 se quiser conversar com algum conhecido; ou aguarde para falar com um de nossos atendentes.

Digitou de novo o 1.

– Para entrar no céu precisamos checar algumas informações e ver como foi sua vida na Terra. Informe seu nome, data de nascimento, CPF e senha. Essa conversa está sendo gravada.

Com todo o prazer ele prestou as informações pedidas e pensou, agora, sim, vou conseguir o acesso. Um robô já se encaminhava ao portão para abri-lo, mas uma voz de comando o fez recuar. Decepção:

– Senhor, tem um número aqui que não confere com o seu CPF. O senhor poderia repeti-lo?

Foi o que ele fez, mas ainda assim o grande portão do céu não se abriu. E ele teve que ficar do lado de fora esperando, sabe-se lá de quem uma solução para a adequação do número do seu CPF. A depender do Estado, levará algum tempo para conseguir o dado retificado.

Do lado fora, de repente apareceu uma figura simpática, vestindo terno, bem falante, bem apessoada, mas portando, de forma estranha, um tridente. Era o capeta fazendo ofertas.

– Venha para o meu portão. Lá, para o ingresso, basta dar o seu nome e a gente verifica se no seu currículo tem o registro de sacanagens, recebimento de propina, uso de arma, e a gente deixa entrar.

O currículo do novo visitante era péssimo para as exigências do capeta. São Pedro indignou-se com o que estava acontecendo na entrada do céu, com o aliciamento pretendido pelo capeta. Depois de se formar uma fila enorme de pessoas de todas as idades, cores, procedências, querendo ingressar no céu, Pedro procurou o Senhor.

– Pai, essa terceirização não foi uma boa ideia, tenho que reconhecer. Veja, a fila de pessoas à porta do céu, esperando serem atendidas, estão sendo barradas por detalhes que impedem o acesso ao paraíso. Depois, Senhor, o capeta já está com sua horda lá fora, fazendo propaganda do inferno.

O Senhor acatou o argumento de Pedro e cancelou imediatamente o contrato de terceirização do céu, pois ela não se mostrou uma boa alternativa. O contato com os aspirantes a uma estada no céu ficou muito impessoal, o que contrariava totalmente as regras de acolhimento, anunciadas por anjos nas suas passagens pela Terra.

São Pedro e os anjos voltaram a seus postos, para a decepção do capeta, sem se importarem com o trabalho a frente. O essencial é que pessoas aptas a ingressarem no céu fossem bem recebidas, como queria o Pai.

*Professor, teólogo e jornalista.

Foto em Pixabay.

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