?>

Opinião

Não existe democracia sem comunicação democratizada

Não existe democracia sem comunicação democratizada

Artigo por RED
12/11/2022 05:00 • Atualizado em 13/11/2022 13:13
Não existe democracia sem comunicação democratizada

De CELSO SCHRÖDER*

A tarefa de reconstrução do novo Brasil, a cargo do Presidente Lula, é gigantesca, complexa e árdua. A destruição da esfera pública, a consolidação do fascismo, o desastre econômico, o sequestro do estado nacional e o empobrecimento radical da população obviamente indicam as prioridades para um governo que pretenda, ao mesmo tempo, enfrentar a miséria insuportável e defender-se de novas aventuras autoritárias. O problema é que isto não acontecerá num ambiente de desinformação, mentira, confusão e negacionismo estratégico.

A conhecida frase do saudoso Daniel Herz, adotada pela FENAJ, de que “não haverá democracia se não existir democracia na comunicação” é atual e se mostrou absolutamente verdadeira neste período de turbilhão iniciado com a Lava Jato, implementado no golpe contra a Presidenta Dilma e radicalizado na prisão do Presidente Lula e ascensão de Bolsonaro.

Bolsonaro é fruto legítimo das mentiras, da anulação da política, da radicalização do discurso de ódio e, portanto, do colapso do jornalismo, da invalidação ilógica da verdade e da anulação do outro, sociológica e psicologicamente falando. A tática clássica da extrema direita para disputar opinião pública é a de estabelecer, como princípio, a conspiração e o negacionismo da história, para, a partir desta nova realidade psicótica e paralela estabelecida, dar curso à necropolítica planejada.

É inegável que a mentira como recurso político foi inicialmente possível pela aliança tática da imprensa comercial com o projeto golpista e, depois, pela sua incapacidade de disputar a construção social da realidade com a mentira já sistêmica e profissionalizada. A desinformação, paradoxalmente no momento mais avançado da tecnologia, venceu momentaneamente a informação.

A recomposição democrática nacional exige, portanto, a democratização urgente e radical dos meios de comunicação, tanto das tradicionais como das novas e potentes tecnologias. É necessário entender democracia na comunicação como um estágio superior à simples posse diversificada dos meios de comunicação ou mesmo da livre possibilidade de emitir opinião ou transmitir informação. Democracia na comunicação significa o controle público sobre o sistema de tal maneira que este interesse social se imponha às vontades privadas. Democracia na comunicação é a disponibilização dos meios para que a comunicação aconteça de maneira horizontal, de modo a promover uma cultura nacional emancipada e libertadora. Democracia na comunicação significa diversidade da propriedade dos meios, mas, sobretudo, a possibilidade de cada meio emissor cumprir a dimensão necessariamente universal da informação, a partir das particularidades regionais e da singularidade do indivíduo.

A FENAJ, Federação Nacional dos Jornalistas, denuncia, desde a redemocratização no final dos anos 1970, um déficit democrático no sistema de comunicação nacional, facilmente detectável na enorme concentração dos meios de comunicação e na completa ausência de regulação no sistema. Desde então, a luta pela democratização da comunicação, ou seja, a luta para atribuir dimensão pública a um serviço social por natureza, passou a ser uma obsessão política da entidade. A criação do FNDC, Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, foi um passo tático importantíssimo para a luta no século vinte. A guerra estratégica por uma lei geral complementar e reguladora da Constituição foi aos poucos assumindo dimensão tática nas batalhas pontuais, principalmente localizadas nas mudanças tecnológicas e nos choques de interesses que estes câmbios promoviam.

Os estágios da luta pela comunicação não foram uniformes nem simétricos. Com pequenas vitórias alinhadas a frequentes derrotas, a tentativa de regulamentação da comunicação e, portanto, a sua universalização, enfrentou desde o início a inércia do monopólio da propriedade dos meios de comunicação, cimentado numa quase ausência de legislação, protegido pela interpretação judicial canhestra do conceito de liberdade expressão e amparado em governos sem força ou vontade de enfrentar estes poderosos monopólios que governaram o país através de sucursais regionais. O momento mais propício para a democracia na comunicação foi quando, no final do último governo Lula, a sociedade conseguiu uma conferência específica que mobilizou o país, articulou os diferentes interesses e permitiu, primeiro, conferências municipais e regionais e, depois, uma conferência nacional com mais de dois mil delegados, em que foram identificadas e planificadas propostas que seriam utilizadas na formulação de uma futura legislação reguladora democrática. Infelizmente, este último passo não foi dado e viramos a década com a chegada avassaladora das grandes plataformas que radicalizam a desregulamentação em nível global e amplificam o déficit antidemocrático nas comunicações, ameaçando, como nunca, a democracia já asfixiada pelos interesses particulares. As novas tecnologias consagram a mentira e dão ao narcisismo a dimensão de eixo estruturante das novas linguagens. O resultado é que passamos do déficit democrático que dificultava a cidadania para um comprometimento da liberdade que refunda o autoritarismo fascista em níveis assustadores, com contornos medievais de obscurantismo.

Nas recentes disputas eleitorais, a momentânea vitória da mentira e da negação da realidade demonstraram o quanto a democracia está refém das vontades autoritárias. Mais do que nunca, um jornalismo crítico, independente e forte se faz necessário. Aliás, se não fosse esse jornalismo, teríamos agora em torno de dois milhões de mortos nesta pandemia e provavelmente o projeto fascista se perpetuasse.

Precisamos refundar a publicidade criativa e mundialmente reconhecida, assim como atribuir dimensão humana às novas tecnologias, neste momento quase que exclusivamente a serviço da mentira. O setor produtivo de comunicação precisa de regulação nacional para se proteger da mórbida voracidade das plataformas digitais

O novo governo Lula, portanto, não só terá que reinventar o estado nacional como terá que fazer isto enfrentando a mais poderosa máquina ideológica de mentira construída em um território. O fascismo brasileiro foi gestado num jornalismo falho, alimentado pela mentira e o ódio através do fundamentalismo religioso amplificado pela utilização ilegal da radiodifusão e pela privatização do espaço público das novas e antigas tecnologias.

A liberdade de expressão não pode mais ser refém do autoritarismo nem ser utilizada como títere do fascismo. Uma nova conferência de comunicação, que resgate e atualize as decisões da primeira conferência eque tenha a participação do setor econômico da comunicação em toda a extensão tecnológica, da sociedade civil organizada e dos trabalhadores da comunicação, se faz necessária. Uma conferência que seja fundamentalmente pautada pelo interesse público e a defesa do estado nacional para promover a liberdade, a fraternidade e a igualdade,esta será a base para a reconstrução da democracia no país.


*Professor de Jornalismo, ex-Presidente e atual diretor da FENAJ, editor do Grifo.

Imagem – logo divulgação FNDC.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Toque novamente para sair.