Opinião
Nada como um tempo após o contratempo
Nada como um tempo após o contratempo
De LEONARDO MELGAREJO*
Imagem destacada da revista TEX, “terras Brancas”. Editora Vecchi, 1979, p.48.
Falar de futebol, a alegria do povo, encarando a realidade, é algo difícil de fazer, sem sofrer. E são muitos os motivos. Desde o perfil dos nossos craques mais valorizados, até a frequente ausência de uma equipe que pratique a solidariedade, que estimule valores reais, que mereça nossa admiração e respeito.
Além disso, temos a máquina de endeusamento, de falsificação daquela que seria a alma nacional. Ela altera a tal ponto o espaço privilegiado do futebol (onde o racismo inexistiria e de onde emergiriam nossos gênios) que, além de enganar aos nossos, ainda ajuda a iludir os pobres e excluídos de outras partes do mundo. Vejo isso com muitos maus olhos. Afinal, precisamos de trabalho coletivo e não de mitos, nem de super-heróis. De um lado, a experiência nacional tem sido muito cruel, tanto conosco como com eles. De outro, a tal da verdade que liberta, tarda mas não falha. Só nos resta entender.
No futebol, com a constelação de craques que temos, é triste ver a idolatria emprestada ao Neymar por pessoas tão distintas como os comentaristas da globo e habitantes da Índia. Da mesma forma, é irritante ver a mistura de ostentação, arrogância e desfaçatez com que se pavoneiam nossos boleiros internacionalizados (com as raríssimas exceções). Não apenas porque ali, na junção entre marqueteiros pagos para criar fantoches e pessoas com qualidades mas sem caráter, se definem e crescem egolatrias como a do super-Moro, ou porque ali os donos da voz tratam de antecipar, subverter e eliminar críticas, como também –e principalmente- porque se prestam a apagar ou minimizar os bons exemplos. Penso aqui em craques como Sócrates, Raí, Casagrande, Tostão, Reinaldo, Juninho Pernambucano e o Afonsinho e até Daniel Alves ou Richarlison, que são exceções quando, caso seus exemplos fossem enaltecidos, poderiam ser a regra.
Não sendo assim, nossos grandes estão menores a cada ano, até em comparação àqueles estrangeiros que jogam no Brasil e que nas Copas se matam pelo time, como o Arrascaeta. Em busca de grana e sucesso, e talvez por exigências do funil em que estão metidos desde crianças, alguns evoluem sem amadurecer, se submetendo a tudo, ou a quase tudo. Com isso se apequenam e são cooptados como atores úteis para o fortalecimento de tudo aquilo que atrai multidões enquanto enaltece poucos casos de sucesso e oculta montanhas de dramas e derrotas. Preferem não pensar, ou não conseguem olhar além do próprio umbigo porque de fato, muitos sabem que são bons de bola e que, no mata mata das disputas pelos holofotes e elogios, só alguns fazem ou farão sucesso.
Então, não sobra espaço para amizades e parcerias reais dentro de campo. E fora dele, a grana e o sucesso, além de reservados a poucos, em nada ajuda a resolver problemas de caráter. Ao que parece, nesta profissão a maioria dos jogadores anseia a tal ponto por oportunidades, que se despersonaliza e se faz cúmplice de tudo que gira em torno daquele ambiente onde predominam desilusões e sofrimentos. Por isso, penso que no seu grupo nossa seleção, mesmo quando ganha de goleada, não convence. Afinal, vence porque é formada por brasileiros notáveis em sua
arte. Pena que a rigor, façam por ignorar o fato de que se despersonalizam transformando-se em produto de exportação semelhante aos minérios que justificam, em sua extração, a destruição de ecossistemas e o genocídio de povos inocentes. E também fazem por não ver que são bibelôs de luxo, dos quais não se exige personalidade ética nem valores morais. Acreditam que lhes basta cumprir o papel de bons peões, para que tudo (do estupro à sonegação) lhes seja permitido ou perdoado. Bastaria que, como Cristiano Ronaldo, tirassem a coca-cola da mesa e pedissem água, ou que levantassem a voz em defesa dos direitos humanos em seu país, para que garantissem uma função social e um sentido longevo à suas existências. Mas não o fazem.
Vejam o caso do churrasco com pó de ouro e a justa tristeza indignada do padre Julio Lancelotti diante daquela refeição obscena, engolida em talvez 15 minutos, onde os pratos (apenas a carne, sem acompanhamentos) custariam de 3 a 9 mil reais. E comparem isso com a noticia de avanço da pobreza em nosso pais. Aqui, em 2021, enorme parcela da população (aproximadamente 62,5 milhões de pessoas) se acotovelavam abaixo da linha da pobreza (crescimento de 22,7% em relação a 2020). No mesmo período, o numero de brasileiros em situação de pobreza extrema teria crescido em 48,2% ( mais 5,8 milhões de pessoas). Considere-se, comparando com aquele rango polvilhado a ouro, que para o Banco Mundial a linha de pobreza corresponderia a rendimentos de US$ 6,85 por pessoa por dia. A linha de extrema pobreza seria de US$ 2,15 /ppd.
Estes dados, que nada têm a ver com a Copa do Mundo, podem ajudam a compreender a responsabilidade dos
nossos jogadores e as intencionalidades do governo que mente, relacionadas ao desmonte do IBGE e outras instituições públicas essenciais ao cumprimento de previsões da Constituição Cidadã. Afinal, enquanto o Neymar prometia homenagear o presidente que mente, com seu primeiro gol em Qatar, a proporção de crianças brasileiras (menores de 14 anos de idade) abaixo da linha de pobreza, alcançava 46,2% do total. Nisto se evidencia não apenas a alienação do craque como a ausência de oportunidades no mercado informal onde patinam nossas familias, ou o fracasso do atual governo e a dimensão dos desafios por ele repassados à gestão que se organiza para assumir os desafios nacionais a partir de janeiro de 2023.
E os heróis do futebol? Eles têm ou não têm responsabilidades em relação ao Brasil do futuro? Pensando nisso,
depois do jogo contra a Coreia, me vieram imagens do futebol de várzea dos anos 70, no Alegrete.
Eu nunca passei da reserva, mas lembro das lutas, porque eram lutas. E sei que nem um dos heróis de então, aqueles que eu via como craques, boleiros de primeira, como o Renatinho do Gil, o Newtinho, o Batista, o Boca, o Pé de Ouro, foi adiante no futebol. E não creio que esperassem por isso, visto que sabidamente curtiram aquela fase e se encaminharam na vida por outros rumos. Mas todos jogavam, sempre, pelo time. Envelheciam no mesmo time, e eram festejados por isso. Os prêmios? Além do respeito, o que poderia ser oferecido? Aliás, ficou folclórico um caso, que talvez nem seja real. Eu conto: em dado ano correu conversa no time onde Boca era o craque, que o patrono, o dono da pensão Beulke familiar, teria dito: “se ficarmos com a taça na festa desse ano não vai faltar mulher para os campeões”. Perdemos, mas foi uma guerra.
E os banquetes? Galinhada ou arroz de carreteiro com cerveja esfriada em tanque com gelo. Sinais honestos de
uma época de parcerias e compromissos que faziam sentido porque não envolvia grana e todos sabiam a importância de confiar e merecer confiança. Pois bem, naquele mesmo período de vida, outra grande alegria formadora de caráter, era a troca de revistas e todos os jogadores de alguma forma participavam do ritual. Isso permitia comprar poucas e ler muitas revistas. Foi lá que aprendi a escrever e de lá me veio a imagem que deu inicio a este texto. Em determinado numero da revista Tex, o esquimó Nanuk, em momento de grande fome, ri feliz por encontrar bostas de urso. É um tesouro, que ele quer dividir. Mas seus companheiros, homens brancos que se consideram superiores, fazem cara de nojo e se recusam a comer. Por isso, em solidariedade na miséria, Nanuk abre mão do que sabe poderia ajudar a estender a própria vida e segue em frente com os outros, na mesma vibe de fome.
Reforçava-se ali a importância do respeito e da parceria que sempre enxerguei naquelas epopeias do futebol varzeano alegretense, e que há décadas não vejo na seleção brasileira. Muitos anos mais tarde entendi o motivo, na clareza das palavras do Frei Sérgio Görgen. Na vida, dizia ele, é melhor errar em grupo do que acertar sozinho”.
Espero que algum dia nossos heróis e seus colegas de dentro e fora das quatro linhas, nossas lideranças econômicas e políticas, e nossos parceiros tenham oportunidade de aprender a grande verdade ali contida, e que Leonel Radde resume com a frase “ninguém faz nada sozinho”.
Vale para o bem e para o mal. Existem bandos de todo tipo como indicam os Moro, os Neymar e aqueles que inflam seus egos e se beneficiam disso.
Precisamos entender isso e fortalecer, animar os nossos grupos, para que o governo que aí vem consiga apoio para descartar os maus exemplos, os canalhas e os que valorizam aqueles dispostos e preparados a dar o bote tão logo se coloquem na condição de se revelar como aspirantes a canalhas.
Felizmente, como bem sabemos, o pior está passando e na vida tudo são disputas. Como cantou o Chico, disfarçado de Julinho da Adelaide, nada como um tempo após o contratempo.
“Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”.
Mais vale uma filha na mão do que dois pais sobrevoando. Ou acampando, na frente dos quartéis.
*Engenheiro Agrônomo, mestre em Economia Rural e doutor em Engenharia de Produção. Foi representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio e presidente da AGAPAN. Faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e é colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, do Movimento Ciência Cidadã e da UCSNAL.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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