Opinião
MST e as lutas contra o veneno, incluindo o midiático
MST e as lutas contra o veneno, incluindo o midiático
De SANDRA BITENCOURT*
Arroz deu cacho e o feijão floriô
Milho na palha, coração cheio de amor
Povo sem terra fez a guerra por justiça
Visto que não tem preguiça este povo de pegar
Cabo de foice, também cabo de enxada
Pra poder fazer roçado e o Brasil se alimentar
Com sacrifício debaixo da lona preta
Inimigo fez careta mas o povo atravessou
Rompendo cercas que cercam a filosofia
De ter paz e harmonia para quem planta o amor
(Chico César, Floriô)
A canção de Chico César conta a essência do maior movimento social da América Latina. Em artigo esclarecedor (Precisamos falar sobre o MST), Kátia Marco e Márcia Schlichting nos contam que o movimento registra 400 mil famílias assentadas e cerca de 70 mil famílias acampadas, presentes em 24 estados brasileiros, 1.900 associações, 185 cooperativas e 120 agroindústrias que atuam na produção, beneficiamento e comercialização da produção da Reforma Agrária Popular. Isso implica, informam as autoras, 15 cadeias produtivas principais, com destaque para a produção de arroz, feijão, milho, trigo, café, leite, mel, mandioca e diversos hortifrutis. Para se ter uma ideia, na safra 2022/2023, o movimento colheu, aproximadamente, 16.111 toneladas de arroz orgânico. De fato, Arroz deu cacho e o feijão floriô! Os assentamentos das regiões Sul e Sudeste produzem cerca de 100 mil toneladas de feijão, sendo os estados de São Paulo e do Paraná os principais produtores.
Qual a memória de ações e enquadramentos midiáticos que permite classificar esse movimento de terrorista e não reconhecer seu avanço na produção de alimento sem veneno, de modo sustentável justo?
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está enfrentando sua quinta Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados, na esteira de uma tentativa da extrema direita em avivar preconceitos e disputar imagem de modo binário (como é seu modo de operar) entre a pujança do agronegócio x e o terror dos invasores de terras.
O MST, como outros movimentos sociais, não é enquadrado nas notícias, desde seu surgimento, de forma adequada, tendo seus militantes como alvo de preconceitos e agressões que são naturalizadas ou “merecidas” pelo seu potencial de questionar algo sagrado para os meios de referência: a propriedade privada. Ainda que esta não tenha função social e seja resultante em muitos casos de grilagem e violência. Obviamente as ações do MST, sobretudo no início da sua jornada, deram causa para a escolha de posição e enquadramentos midiáticos. Lembro bem quando trabalhei num importante grupo de comunicação aqui do Estado que estava proibido o uso da expressão ocupação nas ações do MST. Era necessário usar invasão.
O jornalismo exerce influência considerável na sociedade, embora seu contrato social e discursivo esteja em revisão pela nova dinâmica das redes sociais. Mas é inegável que na sua ação simbólica de produção de discursos que repercutem na formação do imaginário coletivo, muitas vezes são consolidadas imagens deturpadas e falsos consensos. Isso se reproduz na luta por moradia, no direito à terra, na remoção de famílias para a construção de barragens, usinas e progressos muitas vezes duvidosos, na dilapidação de direitos trabalhista e previdenciários. O jornalismo pode ser considerado uma espécie de regulador da pluralidade política e social, onde seu papel principal não seria o de expor os conflitos, mas de exclusão da agenda pública aqueles que vão de encontro aos consensos políticos, demarcando os conflitos políticos aceitáveis (Hallin Apud Biroli, 2013, p. 138).
No artigo Os ruralistas e os meios de comunicação: a construção do discurso sobre o direito à terra durante comissões parlamentares de inquérito, apresentado na Compós de 2019 pela então doutoranda da UnB, Mayrá Silva Lima, são identificados os discursos construídos sobre o direito à terra a partir da análise dos enquadramentos midiáticos da cobertura jornalística realizada pelos jornais Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo sobre as Comissões Parlamentar Mistas de Inquérito (CPMI) da Terra e do ‘MST’. As investigações nas Comissões foram capazes de agendar temas relacionados ao direito à terra nos meios de comunicação, o que abriu o questionamento acerca dos enquadramentos utilizados e de que forma isto contribuiu para os interesses ruralistas, em detrimento dos interesses concorrentes. Considerando que os interesses dos ruralistas são mais bem posicionados que outros, a campanha o Agro é Pop está aí para mostrar isso, definindo assim relações de dominação e poder, a análise dos meios de comunicação se torna importante diante da construção de subjetividades coletivas e consensos que fortalecem a hegemonia dos interesses ruralistas, nos diz a autora.
Vale a pena ler as conclusões do estudo:
Os textos veiculados pelos meios de comunicação, cujo tema foi a CPMI da Terra e a CPMI do MST, possibilitaram a construção de uma narrativa que justificou a ação coercitiva e investigativa do Parlamento contra as entidades em questão. As quebras de sigilo bancário de entidades sejam de trabalhadores, seja patronal, no caso da CPMI da Terra, foi o filão investigatório que produziu mais apelo midiático. Não obstante, a análise dos enquadramentos presentes nos jornais pesquisados nos mostra que os privilégios de recursos dos ruralistas não são somente do ponto de vista econômico, mas também simbólico. A intolerância ao MST, manifestada pela CPMI da Terra e seguida na CPMI do MST, ganhou os meios de comunicação e beneficiou os discursos ruralistas não necessariamente pela defesa de seus interesses, mas pela desconstrução do interesse antagônico e de sua imagem como ator político legitimado, seja por sua identidade enquanto movimento popular, seja pela promoção da desconfiança da opinião pública acerca da idoneidade da causa promovida.
A análise é de 2019. De lá para cá, passamos por uma experiência aterradora de fascismo miliciano no poder, com destruição ambiental, política, institucional e cujas vítimas incluíram os próprios meios de referência e o jornalismo profissional. Qual será a medida para noticiar mais esta CPI, um tanto sem sentido e já caracterizada como uma estratégia para revidar os julgamentos e investigações para ações de fato criminosas?
Creio que precisamos estar muito atentos. A qualidade cênica do protesto social o torna vulnerável à omissão ou á deturpação da mídia. O recurso à violência que sempre seduz as telas leva à criminalização e repressão. Temos novos componentes: as performances para internet, gerando cliques, engajamento e deturpações. Como disputar uma imagem de movimento que produz mesa farta, comida saudável, alimento sem veneno e sem agressão ambiental, de modo cooperativo e justo? Me parece que há jogo para a consolidação dessa imagem.
É importante acessar uma combinação de variáveis de êxito midiático que associa táticas disruptivas (para atrair a mídia) e institucionais (para obter tratamento positivo). É muito importante que o movimento utilize temas e iniciativas que impeçam que as suas ações sejam rotuladas como violentas, embora algumas delas tenham sim um componente altamente contencioso, tendo em vista as estruturas de poder que desafia.
Dentre as estratégias parece correta a escolha de uso intensivo de porta-vozes identificados com a causa de comida justa e saudável, facilitando a tarefa da mídia, disputando espaço nas redes e aumentando a probabilidade de a organização ser citada como fonte de informação e de iniciativa que faz eco em parcela significativa da sociedade. Esta mesma estratégia também insistiria na transmissão de mensagens claras como, por exemplo, os objetivos específicos da organização e os ganhos socioambientais que ela garante. Penso que deve haver muito cuidado com terminologias que não raro são deturpadas. E que seria urgente, no andamento desse circo extremista, ter monitoramento das redes e análise direta das rotinas jornalísticas em relação às notícias sobre o movimento e a perspectiva dos profissionais de comunicação para lançar mais luz sobre as condições que podem explicar o sucesso ou não de determinados enquadramentos.
Repensar bandeiras, aumentar a universalidade e seguir na mística da terra para produzir alimento saudável me parece um bom caminho, do ponto de vista comunicacional, porque os verdadeiros terroristas estão a postos.
*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.
Imagem em Pixabay.
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