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Opinião

“Mercadocracia” brasileira

“Mercadocracia” brasileira

Artigo por RED
12/11/2022 11:22 • Atualizado em 14/11/2022 11:20
“Mercadocracia” brasileira

De CHRISTIAN VELLOSO KUHN*

Bastou o presidente eleito Lula anunciar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de Transição para retirar despesas com programas de transferência de renda do teto de gastos, e o anúncio do ex-ministro Guido Mantega na composição do grupo temático de Planejamento, Orçamento e Gestão da equipe de transição de Lula, que o mercado financeiro já reagiu negativamente. Na quinta-feira (10/11), a bolsa sofreu uma queda de 3,35% na Ibovespa, enquanto o dólar aumentou 4,14%.

A PEC, já batizada de “fura-teto”, visa manter o valor de R$ 600,00 do Auxílio Brasil para o orçamento de 2023, o que requer uma elevação de R$ 27 bilhões no valor empenhado. Depois de passar pela Câmara, a MP que requeria o crédito desse montante para ampliar o valor do auxílio também foi aprovada no Senado.

A economista e professora Mônica de Bolle, da Universidade John Hopkins, afirmou numa entrevista para O Globo que essa reação do mercado em si não significa tanto, uma vez que “está sempre com posições compradas e faz esses movimentos de Bolsa e dólar para ganhar dinheiro”. O que ela destaca é o debate sobre a política econômica a ser adotada no próximo governo Lula.

Mônica adverte a falta de coerência e racionalidade dos agentes de mercado, quando não demonstraram a mesma intolerância à irresponsabilidade fiscal do Governo Bolsonaro em ocasiões como a PEC Kamikaze ou o Orçamento Secreto, ambas infringindo o limite estabelecido para o Teto dos Gastos.

De Bolle argumenta que o teto já demonstrou ser um mecanismo falho e que precisa ser substituído por uma regra fiscal exequível, ajustável como a Meta de Inflação, e com um horizonte maior do que apenas um ano. Finalmente, a economista desmitifica a crença infundada que o Auxílio Brasil surta um efeito inflacionário na economia, uma vez que esse recurso é usado totalmente para consumo por seus beneficiados, acarretando em maior crescimento econômico via elevação da demanda agregada.

Por esse motivo, Mônica conclui que “a reação do mercado é ideológica”. Ao encontro dessa afirmação, o economista e professor Caetano Penna, da Delf University of Technology, apresentou uma thread (fio) no Twitter com uma pesquisa que fez sobre a reação do mercado nas eleições de 2002. No primeiro turno daquele ano (06/10), Lula fez 46,4% dos votos válidos, repercutindo no dia seguinte uma queda de 4% na Ibovespa, e uma alta de 3,3% no dólar, muito próximo do movimento do mercado de agora, 20 anos depois. Depois do segundo turno (27/10), Lula anunciou a Secretaria de Combate à Fome. Mais uma vez, após um dia, o mercado reagiu com uma redução de 4,4% na Ibovespa e uma alta de 1,3% no dólar.

Caetano até lembra de uma suspeita bastante desrespeitosa do Secretário do Tesouro dos EUA, Paul O´Neil, de que os mercados avaliariam as “declarações de Lula para se assegurar de que ele não é um maluco”. Tanto não se confirmou essa suspeita, que a Ibovespa subiu impressionantes 338% da primeira semana após o segundo turno até o final do seu primeiro mandato.

O advogado Eduardo Alves também publicou no Twitter três casos em que o mercado demonstrou aprovação de resultados eleitorais: i) o triunfo de Hitler em 1933; ii) a eleição de Collor em 1989; e iii) a vitória de Hoover em 1928, um ano antes do colapso da bolsa de 1929. Percebe-se um certo apreço do mercado por governos com inclinação ideológica à direita, inclusive autoritários, como o governo Bolsonaro.

Caetano faz menção ao seminal artigo do polonês Michal Kalecki (1943), Aspectos Políticos do Pleno Emprego, quando este afirmava que “toda a ampliação da atividade de Estado é vista por ‘homens de negócios’ com suspeita, mas a criação de emprego através de gastos do governo tem um aspecto especial que torna a oposição particularmente intensa”. Essa oposição, segundo Kalecki, estava sustentada na dependência do emprego do nível de confiança do mercado. Quando cai a confiança, os capitalistas reduziriam investimento, criando uma crise econômica. Desse modo, estes exerciam “um poderoso controle indireto sobre a política do governo”. Como os governos poderiam compensar a diminuição dos investimentos privados com a elevação dos seus próprios gastos, os “homens de negócio” reagiam negativamente a esse tipo de intervenção estatal na economia, pois isso enfraquecia a poder de influência do mercado sobre o governo.

É comum que, tanto economistas pró-mercado, como agentes do mercado, argumentem que a credibilidade da política econômica do governo é comprometida quando este não persegue regras fiscais rígidas, sobretudo de austeridade, ou não demonstra compromisso suficiente no combate à inflação. Dessa forma, notadamente, o conceito de credibilidade está associado à economia mainstream (ortodoxia).

Na defesa da autonomia do Banco Central, por exemplo, observa-se que essa autonomia é apenas em relação ao governo, mas o mesmo não se pode dizer do lobby do mercado financeiro. É por causa disso que, ou o governo rompe com esse parasitismo do mercado, ou jamais terá autonomia e independência suficiente para definir as diretrizes de sua política econômica, e até mesmo a composição de sua equipe. Para pôr em prática os compromissos assumidos pelo governo eleito no combate à fome e à miséria e em incluir o pobre no orçamento, é condição sine qua non que este destitua a “mercadocracia” que imperou principalmente durante o atual governo Bolsonaro.


*Professor e economista do Instituto PROFECOM, autor de livros como Governo Figueiredo (1979-1985): política econômica e ciclo político-eleitoral. 

Imagem em Pixabay.

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