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Opinião

Memória Impedida, Memória Manipulada

Memória Impedida, Memória Manipulada

Artigo por RED
26/07/2023 05:30 • Atualizado em 28/07/2023 09:54
Memória Impedida, Memória Manipulada

De ADÃO VILLAVERDE* e LUIZ MARCÍRIO MACHADO**

Lapsos de memória são diferentes de esquecimentos e se fazem acompanhar de falsas recordações, recontadas como reais, que são conhecidas cientificamente por ‘paramnésias’ ou ‘parapraxias’, que também podem ser referidas como uma espécie de ‘próteses’ de memórias.

No caso particular da política, falsificar os fatos históricos, contando uma narrativa diferente é a opção pelo nítido caminho de eximir-se da culpa. É sempre o discurso político de quem tem algo a esconder, contando de um jeito menos ignóbil, aquilo que seria absolutamente condenável ou deplorável.

Esta é a essência da reflexão freudiana do esquecimento ou falsificação da memória; que Nietzsche, que tinha muitos pontos comuns com o criador da psicanálise, chamava de “conflito entre a memória e o orgulho”. Aquela, que tem a obrigação ética de trazer os atos e fatos como efetivamente se deram, sem nenhum prurido. E este, o orgulho, parecendo sempre o espelho de um ideal, podendo tentar através de uma narrativa encobridora, desfazer a implacabilidade da memória. Consumando que fatos e atos ignóbeis que produzam conspurcação, sejam páginas viradas da história. Sendo este o eterno e permanente conflito entre a memória que não deve negociar, e o orgulho, que tensiona permanentemente para a manipulação, enquanto a memória não cede.

O grande filósofo e pensador francês, Paul Ricceur, que desenvolveu grandes contribuições para a fenomenologia e a hermenêutica, em “memória, história e esquecimento”, reafirma que a história é dos vitoriosos, que nem sempre é contada como realmente aconteceu, mas sim com um nítido sentido de ir preenchendo seus objetivos finais, pouco importando seus meios.

E se valendo do tempo, aproveita para não relembrar coisas reais, por pura conveniência, para poder assim seguir manipulando a memória, onde não tem exemplo melhor e mais concreto e objetivo nos nossos dias, do que o mergulho insensato das Fake News em todas as esferas da sociedade.

Mas tem outro tipo de memória sempre em questão, a chamada impedida, que é igual, ao fim e ao cabo, a falsificada. Freud em “psicopatologia da vida cotidiana” diz que as ‘parapraxias’ ou mesmo erros de memórias, se valem deste fato, que com o passar do tempo, as pessoas que poderiam desmentir, não estão mais presentes. E como elas ficaram como conhecimento tácito, vai se perdendo a memória de quem as tinha, pois não deixaram qualquer resquício de registro na forma explícita, abrindo espaços para a reconstrução de narrativas por conveniências. Neste caso, se não tem mais testemunhas, fica o dito pelo não dito, tornando a ‘parapraxia’ como uma rememoração de fatos verdadeiros.

Para Freud, a psicopatologia humana, a ignorância ou mesmo uma lacuna, poderá levar à repetição, às vezes numa narrativa falsa daquilo que apareceu antes, mas podendo até terminar numa grande tragédia, coincidindo com a mesma reflexão de Marx no clássico “18 Brumário”. Que se encaixa perfeitamente em situações de golpes ou regimes autoritários, que aparecem recorrentemente no mindset regressivo dos nossos tempos. Como sendo a possibilidade da reconstrução de uma “nova ordem”, mas sem deixar de disfarçar ou mesmo esconder as partes mais ignóbeis de métodos e os legados inaceitáveis que deixaram. E nestes momentos, pessoas que poderiam ser testemunhas de que o processo histórico não é bem assim, são deixadas de lado, ou jogadas no ostracismo, sendo até intituladas de equivocadas, para dar trânsito muitas vezes ao despotismo e ao arbítrio.

Por outro lado, não existe algo tão maléfico para uma sociedade, do que um regime arbitrário e repressivo, que faz transitar a narrativa pintada falsamente, de que está defendendo valores democráticos. Que aparece até num bordão popular, que é repetido por muitos, para referendar isto, usado quase ad nauseam, que é “que o povo não sabe votar”. Pois uma cidadania que não cuida com rigor seu processo histórico, está sob o risco permanente da repetição, da farsa ou mesmo da tragédia.

Felizmente, ainda que de forma apertada, isto não se repetiu no último processo eleitoral brasileiro, e pelo menos se “deu passos importantes para se suplantar o horror”, como disse o jornalista Fernando Gabeira. Houve um rearranjo das forças democráticas, progressistas e de esquerda, que interditou através das urnas o obscurantismo, a regressão e o golpe, que mesmo nos seus estertores crepitantes e histriônicos, ainda tentou reação, no último 8 de janeiro, quase que fazendo a história se repetir com uma enorme tragédia.

É necessário que se continue alerta e não passivos frente às tentativas recorrentes de retorno ao obscurantismo e à regressão, sobretudo aquelas práticas que advogam de um vulgar e raso de patriotismo, ou mesmo de uma distorcida e manipulada memória “nacionalista”.

Podemos lembrar ainda, de mais uma conclusão freudiana, acerca do referido acima, ao contrário do que popularmente se apregoa, de que a memória dos fatos com o tempo se esquece, ou seja, vira-se a página. Se ela não for julgada, com o devido processo legal, ela poderá reproduzir nos indivíduos ou numa comunidade, aquilo que se chama na psicanálise, de um “sentimento inconsciente de culpa ou um processo de sentimento traumático”. As grandes injustiças ou atos de violência contra a humanidade, não se apagam com o tempo ou o esquecimento. Paradoxalmente, o que é sempre lembrado, não se esquece, exigindo por tanto o seu julgamento consciente.

O amor à pátria que os humanistas devem defender e promover e, fundamentalmente dar curso a ele, é aquele que tem como pressupostos as amplas liberdades democráticas, sobretudo como um elemento de valor. Que em certa medida, estão desenhados e esculpidos na frase do nosso grande poeta lírico e épico, o eterno Castro Alves, que disse: “Auriverde pendão de minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança, ……, tu que, da liberdade após a guerra, foste hasteado dos heróis na lança, antes te houvessem roto na batalha, que servires a um povo de mortalha”.


*Engenheiro e Professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação PUCRS.

**Psicanalista e Professor Aposentado.

Imagem em Pixabay.

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