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Opinião

Marcelo virou Priscilla

Marcelo virou Priscilla

Artigo por RED
21/03/2023 05:30 • Atualizado em 22/03/2023 17:38
Marcelo virou Priscilla

De EUGÊNIO BORTOLON*

Priscilla nasceu Marcelo há quase 70 anos. Magrinho, cabeludo e chorão. Foi crescendo e nunca se achou, se via ou sentia ser Marcelo. Parecia que estava vivendo só um personagem, dentro da sua mente se via como alguém diferente, com outra postura diante da vida e das figuras que o rodeavam – pai, mãe, coleguinhas, primos, o vilarejo onde morava no interior de Caxias do Sul. Ele era um ‘estranho’ naquele ninho da infância. Ninguém imaginava para onde iria aquela criança que crescia e era avesso a tudo e a todos. Vivia em estado de angústia e desespero, não sentia atração por nada. Nem por questões de gênero ou por qualquer profissão que pudesse lhe garantir a sobrevivência.

Queria ser outra coisa, mas não sabia definir e nem vislumbrar como deveria se apresentar para o mundo. Foi vivendo aqui e ali, quase sempre com recursos da família, que achou que Marcelo não ia dar em nada e seria um fardo pesado demais, mas como pais deveriam dar suporte para ele seguir em frente com a sua existência atribulada.
Tentou se reinventar várias vezes depois que seus pais partiram. Construção civil, encanador, eletricista, jardineiro, cabeleireiro, designer, e enfim aposentado por doença. Com a cabeça sempre a mil, ‘me sentia um vulcão prestes a entrar em erupção’, diz ainda, perplexo, com tudo que a humanidade lhe reservou, e confessa que nunca abraçou uma causa definitiva para embasar o seu conteúdo perante as pessoas que o cercavam. Também não tinha rumo algum a seguir. Disse-me certa vez que lia tudo que aparecia na sua frente, até bula de remédio, e repetia seguidamente algumas frases que gostou muito e que guardou ‘de cabeça’ vista em algum livro da escritora Isabel Allende: ‘A linha que divide a realidade da imaginação é muito tênue. A memória é sempre caprichosa, fruto do vivido, do desejado e da fantasia’. Falo do Marcelo porque não o vejo nas ruas do meu bairro há vários meses. Os zeladores dos prédios vizinhos de Porto Alegre também não o viram mais. ‘Ele vivia conversando com um doutor da cabeça (psiquiatra) que mora naquela casa amarela’, me disse uma auxiliar de serviços administrativos e sua conhecida de longa data, também surpresa com o seu súbito desaparecimento. Marcelo morava num ‘puxadinho’ de uma outra casa, cuja dona tinha vários inquilinos, inclusive um ex-jogador do Inter de relativa fama nos anos 70/80, ex-colega de Falcão, Figueroa, Carpegiani, e até hoje um bom analista das coisas do futebol e com quem converso eventualmente. Na época que ele jogava, trabalhava como setorista do Inter pela Folha da Manhã e muitas vezes o entrevistei.

Durante o grosso da pandemia em que todo mundo andava escondido de todo mundo, encontrei Marcelo sentado no muro da rua. Saudei-o e o chamei de Marcelo. ‘Oi senhor, queria pedir um favor: Não me chame mais de Marcelo. Agora sou Priscilla. Finalmente médicos, juízes e assim por diante acabaram com minha angústia. Consegui meu registro no cartório. Sou outra pessoa. Pobre, mas outra pessoa. Aquilo que estava escondido lá no baú da minha cabeça finalmente destranquei.’ Parecia feliz e relembrou, outra vez, Isabel Allende: ‘Agora sou mulher, mas não uma mulher de virtude negociável’. E me contou histórias e mais estórias de sua vida, sempre ressaltando que a memória é sempre uma baderna sem lógica. Priscilla só lamentou neste breve diálogo que tivemos que passou toda a vida entre dois mundos – o mundo de Marcelo e outro mundo , que era o de um fantasma. Só lamentou que já estava velho, sem fôlego, não conseguia caminhar muito porque o ar lhe escapava, mas que era simplesmente Priscilla. Visualmente não mudou nada, não tinha dinheiro para ser uma dama, mas que era Priscilla e pronto.

O interessante é que ele falava, extasiado, para todos os conhecidos e desconhecidos da rua e das vizinhanças sobre o processo da sua mudança. Não queria mais esconder. Passou tanto tempo dividido, agoniado, que agora era hora de extravasar e mostrar a face que não existia e que arduamente foi conseguida. ‘Agora não largo mais a minha mão. Seguro as duas porque não posso mais viver em sofrimento e para me convencer de que estou feliz. Demorou, mas a minha cabeça está em paz. Não sabia o que era, mas agora sei.’ Lamentável mesmo é que sumiu misteriosamente. Era a chance de ver e participar da felicidade e ver ela compartilhando o seu status democrático de que encontrou a paz, aliviou a cabeça das torturas que a atormentavam e foi viver os seus momentos mais alegres depois de uma conturbada vida de 70 anos. ‘Isabel Allende disse certa vez que no transcurso da vida embelezamos algumas lembranças e procuramos esquecer outras, cada um é livre para contar como achar melhor’, voltou a reafirmar palavras da sua escritora favorita. E assim segue a vida de Priscilla. Não se sabe onde foi parar, se está viva ou morta, mas um dia há de reaparecer pela vizinhança. É o que esperam muitos dos seus conhecidos e amigos. Mesmo que o seu ‘puxadinho’ esteja prestes a ser demolido por uma dessas incorporadoras para fazer surgir um prédio gigantesco.


*Jornalista com mais de 50 anos de trajetória. Destaque na editoria de economia.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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