Opinião
Lula não crê, mas que o Centrão existe, existe
Lula não crê, mas que o Centrão existe, existe
De RUDOLFO LAGO*
Ao redefinir sua estratégia de negociação de novos espaços no primeiro escalão do governo, o presidente Lula saiu-se com a seguinte frase na conversa com o jornalista Marcos Uchõa, no programa semanal do CanalGov, o Conversa com o Presidente: “Não existe Centrão”.
Bem, é clara qual é a nova tática de Lula. Ele pretende agora negociar cada um dos novos espaços no governo com os comandantes de cada partido. Se houver mais espaço para o União Brasil, a conversa será com seu presidente, Luciano Bivar (PE). Se entrar o Republicanos, o papo será com Marcos Pereira (SP). A clara intenção de Lula é diminuir o empoderamento do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Tirar Lira dessa negociação, para que a conversa com o presidente da Câmara seja somente mais institucional: de presidente da República para presidente da Cãmara. Conversas políticas, partido a partido.
Isso até pode fazer sentido do ponto de vista institucional. Juridicamente, o Centrão não existe. Não tem CNPJ, não tem bancada formal, não recebe dinheiro do fundo partidário, não tem tempo de TV. O que está longe, porém, de significar que o Centrão seja uma lenda. O Centrão não pertence à categoria da Mula Sem Cabeça, do Saci Pererè, ou do chip comunista na vacina contra a covid-19. Lula diz que não crê no Centrão. Mas que o Centrão, existe, existe. Aliás, hoje no Congresso Nacional, especialmente na Câmara, não há nada mais concreto que o Centrão.
O Centrão é a medida exata da falta de solidez ideológica da quase totalidade dos partidos políticos brasileiros. Com raras exceções, as legendas políticas do Brasil estão próximas da definição de Gilberto Kassab quando fundou o PSD: nem de direita nem de esquerda, talvez nem de centro, muito pelo contrário. Ou seja, um partido fluido na sua ideologia, capaz, portanto, de aderir a qualquer projeto de governo conforme a sua conveniência. O PSD empresta a quem deseje o apoio o que chama de garantia da governabilidade. O governo precisa de votos no Congresso, e negocia, então, com os diversos PSDs à disposição as condições para obter esse apoio.
Nada mais Centrão do que isso. O grupo é filho dileto dessa fluidez ideológica. Desde quando a sua primeira conformação surgiu no governo José Sarney. Na ocasião, os grupos que comandavam o processo na Assembleia Nacional Constituinte preparavam uma profunda mudança na lógica de governo do país que diminuiria especialmente o poder de Sarney. Primeiro, o Brasil iria passar a ser parlamentarista, quem mandaria seria um primeiro-ministro, e Sarney perderia seu protagonismo. Sarney tinha sido eleito presidente para um mandato de seis anos, a Constituinte pretendia reduzir esse mandato para quatro.
O que fez, então, Sarney? Encontrou um grupo fluido de parlamentares espalhados por diversos partidos que uniu em sua defesa para alterar o texto que estava sendo discutido. Em troca de emissoras de rádio e outras benesses, o grupo manteve o presidencialismo e deu a Sarney um mandato de cinco anos. É por isso que a primeira eleição presidencial direta foi solteira, em 1989. Ao negociar com Sarney, o então líder daquele Centrão, Roberto Cardoso Alves, desvirtuou a frase da oração de São Francisco: “É dando que se recebe”.
Após a ascensão de Eduardo Cunha (hoje deputado pelo PTB de São Paulo), o Centrão ultrapassou o “É dando que se recebe”. Para além de uma força que adere conforme o preço negociado para tirar o governo de dificuldades, o Centrão passou a ter o poder real de criar ele mesmo as dificuldades para depois negociar as facilidades. A então presidente Dilma Rousseff não topou o jogo, o Centrão tratou de inviabilizá-la, e o resultado final disso foi o impeachment.
Jair Bolsonaro, para manter Arthur Lira sentado sobre seus mais de 100 pedidos de impeachment, entregou totalmente o comando do Legislativo ao Centrão. E essa situação foi se mantendo mais e mais, a partir da reeleição de Lira. Hoje, o Centrão define para que lado vai a Câmara, especialmente. Quando quer, ajuda o governo. Quando não quer, o derrota.
Na última edição do Radar, pesquisa que a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) faz mensalmente com um grupo de analistas políticos, a percepção desse grupo é que os “independentes” hoje somam 192 deputados na Cãmara. São o grupo majoritário. Bem, Lula pode chamá-los com o nome que quiser. Mas esse grupo é o Centrão.
Como entre os vários defeitos de Lula não está o de ser terraplanista, fica claro que a sua declaração sobre a inexistência do Centrão é tática política. Um sujeito moldado pelas dificuldades da vida não costuma ignorar a existência das coisas concretas. Lula já deixou claro que irá mexer no governo para abrigar o grupo e obter um pouco mais de facilidade na negociação política no Congresso. Apenas quer tentar manter um pouco mais de controle na negociação.
Lula até pode resolver chamar a onça de gatinho. Mas ele não é bobo. Sabe que lida com uma onça.
*Ex-diretor do Congresso em Foco Análise, é chefe da sucursal do Correio da Manhã em Brasília. Formado pela UnB, passou pelas principais redações do país. Responsável por furos como o dos anões do orçamento e o que levou à cassação de Luiz Estevão. Ganhador do Prêmio Esso.
Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados.
Publicado no Congresso em Foco.
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