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Opinião

Lula e o Desenvolvimento

Lula e o Desenvolvimento

Artigo por RED
03/01/2023 14:00 • Atualizado em 04/01/2023 09:13
Lula e o Desenvolvimento

De LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

“Em diálogo com os 27 governadores, vamos definir prioridades para retomar obras irresponsavelmente paralisadas, que são mais de 14 mil no país. Vamos retomar o Minha Casa Minha Vida e estruturar um novo PAC para gerar empregos na velocidade que o Brasil requer. Buscaremos financiamento e cooperação – nacional e internacional – para o investimento, para dinamizar e expandir o mercado interno de consumo, desenvolver o comércio, exportações, serviços, agricultura e a indústria.

Os bancos públicos, especialmente o BNDES, e as empresas indutoras do crescimento e inovação, como a Petrobras, terão papel fundamental neste novo ciclo.

Ao mesmo tempo, vamos impulsionar as pequenas e médias empresas, potencialmente as maiores geradoras de emprego e renda, o empreendedorismo, o cooperativismo e a economia criativa.” A roda da economia vai voltar a girar e o consumo popular terá papel central neste processo.

Assim falou Lula em seu discurso de posse, assim falam as grandes economias mundiais. Mais de uma década de dificuldades após a crise de 2008, a retração produzida pela pandemia empurrou as principais economias do mundo a anunciar políticas mais diretas de ampliação do poder aquisitivo e da demanda agregada via estímulo fiscal.

O programa trilionário do governo Biden contempla a construção de 2 milhões de casas, internet banda larga para a população rural, saneamento em creches, escolas públicas e faculdades comunitárias, hospitais para veteranos de guerra, estradas, rodovias, pontes, calçadas e ciclovias. Também prevê financiamento para o transporte público, incentivo aos veículos elétricos com 500 mil postos de carregamento e substituição de 20% da frota de ônibus escolares, terminais de aeroportos e sistemas de balsas fluviais.

A Europa anunciou o Next Generation EU com 1,824 trilhão de euros para acelerar a recuperação e ampliar a resiliência dos sistemas produtivos. Mais de 30% dos recursos estão associados à agenda ambiental e climática e outros 20% à transição digital. Nas últimas décadas, a China galgou a posição de segunda maior economia do mundo e tem apresentado taxas de crescimento mais altas e resilientes, comparativamente à média mundial, beneficiando-se também de um colossal programa de investimento público.

No Brasil, os projetos públicos foram historicamente financiados por bancos também públicos, como BNDES e Caixa Econômica, inclusive quando realizados pela iniciativa privada, representando em torno de 70% a 80% dos recursos para os investimentos, especialmente quando envolvem riscos de construção e implantação. Em 2012, o BNDES representava 96% da oferta de financiamento de longo prazo para o setor de infraestrutura. Em 2019, sua participação caiu para 40%. As debêntures de infraestrutura passam a responder por 56%. Em valores nominais, o total era de 55 bilhões de reais em 2012 e de 60 bilhões em 2019. O valor financiado em 2014 somava 81 bilhões, praticamente 35% superior ao de 2019. Apenas o BNDES ofertou 69 bilhões em 2014.

Além da retração no valor absoluto, que evidencia a necessidade de combinação e complementaridade ao invés da substituição do público pelo privado, ou vice-versa, é preciso analisar a evolução na composição do financiamento. A análise do estoque de debêntures de infraestrutura expõe a concentração em setores como energia (72%) e transporte e logística (22%), apontados como casos exitosos de concessão para a iniciativa privada pela maior maturidade do seu ambiente regulatório. Cabe apontar que a maturidade se associa à viabilidade de sua concessão para a iniciativa privada inerente a setores sustentados por receitas tarifárias, dispensando recursos fiscais ou estruturas de garantias do Poder Público. Esta não é a realidade de muitos projetos que demandam recursos orçamentários para pagar, integral ou parcialmente, sua implantação, operação e manutenção.

Boa parte dos serviços públicos mais carentes de investimentos que dependem de recursos orçamentários é de responsabilidade dos entes subnacionais. É baixo o apetite para realizar ou financiar investimentos remunerados por pagamentos públicos diferidos no tempo, envolvendo o compromisso orçamentário por diversas gestões municipais ou estaduais. As análises costumam associar o risco de inadimplência a uma fragilidade institucional ou até cultural brasileira, que demanda garantias aos pagamentos do Poder Público. A realidade é que há uma enorme diferença entre deter direitos creditórios contra os entes federativos e o governo federal, controlador da autoridade monetária. A maior participação do investimento privado em equipamentos públicos depende da presença de recursos públicos federais para pagamento, financiamento e garantias.

A Lei 12.431, de 2011, institui as chamadas debêntures incentivadas, oferecendo como atrativo alíquota zero de IR aos compradores pessoas físicas e 15% para pessoas jurídicas. Este é um mecanismo importante e deve continuar a ser fomentado, mas não foi concebido como instrumento principal ou único de financiamento da infraestrutura, pelas dificuldades na compatibilização entre ativo e passivo, especialmente no que se refere ao tempo médio dos seus fluxos. Por serem intensivos em capital, a remuneração dos investimentos em infraestrutura demanda prazos longos de maturação, conformando ativos menos líquidos. O perfil e apetite de risco do credor pessoa física usualmente demanda ativos mais líquidos, que permitam a conversão em dinheiro em prazo mais curto. A destinação de recursos de investidores pessoas físicas encontra restrições especialmente para projetos novos, com anos de investimento sem percepção de receita, responsáveis pelas mais expressivas ampliações da oferta de infraestrutura.

Recentemente, a Lei 12.431 foi alterada para estender alternativamente o incentivo fiscal ao emissor. A alteração visa atrair investidores institucionais. Fundos de pensão, que apresentam maior vocação pela perspectiva de longo prazo, são fundações imunes de IR e não capturavam os benefícios das debêntures incentivadas. A isenção que permite a emissão a juros inferiores, pela equivalência à taxa líquida ao comprador pessoa física, tornava o papel incentivado menos atrativo ao fundo de pensão do que uma debênture regular, com maior prêmio para o mesmo oportunidade. Taxas de juro altas, de curto ou longo prazo, apresentam a oportunidade de prêmios elevados em ativos livre de risco de crédito com liquidez elevada, como títulos do Tesouro Nacional, que costumam atrair recursos e rivalizar com outras alternativas de maior risco.

Muita esperança é depositada nos recursos internacionais como fonte de investimento e financiamento, associada a uma percepção de abundante liquidez no mercado internacional com a apresentação das carências nacionais como oportunidades. A harmonia exigida entre ativos e passivos no balanço não recomenda dívidas em dólares se sua receita é em reais. Serviços de infraestrutura são quase sempre prestados no território nacional e os custos de instrumentos financeiros para proteção da variação cambial no longo prazo são inviáveis. A participação do capital internacional como investidor apresenta maior flexibilidade na gestão do risco cambial, por conceder alguma discricionariedade na data da conversão e envio de recursos para o exterior, mas, no caso de dívidas com prazos de amortização e vencimento determinados, o risco tende a ser proibitivo. Como o risco cambial não pode ser suportado pelo investidor, acaba alocado ao usuário, pela indexação da tarifa à variação cambial em alguma proporção, ou ao contribuinte, pela atribuição desse risco ao Poder Público. As crises econômicas brasileiras podem ser contadas pelas sucessivas contrações de dívida em moeda estrangeira para financiar projetos não geradores de divisas internacionais.

Correlacionar a correção monetária das tarifas de serviços públicos à variação cambial apresenta efeitos perversos para a política monetária, inflacionando os preços administrados em momentos de desvalorização da moeda doméstica, induzindo a elevações nas taxas de juro mesmo em momentos de baixo dinamismo da economia. Qualquer coincidência com o momento atual é mera semelhança.

O debate precisa escapar da tentação das soluções superficiais e simples oferecidas pelas oposições binárias entre público e privado, para integrar Estado e mercado no diálogo sobre a qualidade das políticas, despesas e tributos que fazem sentido. Cabe aos bancos públicos protagonismo na coordenação e financiamento dos investimentos necessários à construção da sociedade desejada. Diante das banalidades liberaloides dos tempos das cavernas, somos tentados a perfilhar as considerações de Keynes a respeito da participação do Estado nas decisões de investimento no capitalismo examinadas no Capítulo XII da Teoria Geral, Expectativas a Longo Prazo: “Há por fim uma categoria crescente de investimentos, que as autoridades públicas fazem ou assumem os riscos, que são francamente influenciados por uma presunção geral de haver vantagens sociais prospectivas no investimento, seja qual for o seu resultado comercial… Como o Estado está em condições de poder calcular a eficiência marginal dos bens de capital no longo prazo e com base nos interesses gerais da comunidade, espero vê-lo assumir uma responsabilidade cada vez maior na organização direta dos investimentos, visto que se afigura provável que as flutuações observadas na estimativa do mercado da eficiência marginal dos diversos tipos de capital, calculada segundo os princípios aqui descritos, serão demasiado grandes para poder ser compensadas por meio de mudanças viáveis da taxa de juros”.

A degradação da economia brasileira trouxe à baila o debate sobre o papel do investimento público na formação bruta de capital fixo e sua importância para o desenvolvimento da economia.

Desde o imediato pós-guerra, o exame da trajetória da nossa economia confirma que o investimento público é crucial para a obtenção de taxas de crescimento elevadas.

Como mostra Angus Maddison, o Brasil ocupava, então, a liderança no torneio mundial do crescimento amparado em um processo de industrialização que avançou para dotar o país de uma estrutura produtiva diversificada e moderna.

Descontada a década perdida dos anos 80, submetida às agruras da crise da dívida externa, o desenvolvimento posterior foi modesto. O primeiro ciclo, o dos anos 90, moveu-se no território do baixo dinamismo e da regressão da estrutura industrial. Esvaiu-se no colapso cambial de 1999. O segundo ciclo apoiado no projeto de inclusão social e expansão do mercado interno foi sustentado pelos preços das commodities e fragilizado pela valorização cambial. Sobreviveu à crise global de 2008, mas foi extinguindo suas forças nos anos que antecederam a crise de 2015.

Desde então, com mais intensidade durante o período eleitoral de 2014, o debate brasileiro trilhou os caminhos das simplificações binárias. Inspirados no filme “Querida, encolhi as crianças”, não são poucos os que recomendam “encolher o Estado”.

A experiência internacional, sobretudo a dos países asiáticos, parece demonstrar a existência de interações virtuosas entre investimento em infraestrutura, expansão industrial, graduação tecnológica e crescimento. Esses países executaram programas de “export led growth” com câmbio competitivo, fortes incentivos e duras exigências de desempenho impostas pelo Estado ao setor privado.

A conjugação de esforços entre o setor público e o setor privado organizado sob forma de grandes empresas permitiu durante muitas décadas a manutenção de taxas agregadas de investimento e de crescimento econômico extremamente elevadas. O economista Ajit Singh, em seus trabalhos sobre o desenvolvimento da Ásia, não hesitou em escolher, como fator crucial do sucesso do “catching up”, a capacidade revelada pelas economias asiáticas de transformar continuamente os ganhos de produtividade decorrentes do avanço tecnológico em investimentos, os investimentos em lucros e os lucros retidos em novos investimentos durante um longo período.

Na China, as elevadas taxas de poupança registradas nas contas nacionais resultam, sobretudo, dos lucros retidos pelas empresas e do crescimento da renda das famílias. As “poupanças” brotam do circuito virtuoso: expansão do crédito-investimento-aumento da produtividade e das exportações líquidas-elevação dos lucros e dos rendimentos.

No debate internacional a respeito das “novas estruturas do crescimento”, o investimento público em infraestrutura econômica-social e em tecnologia tem um protagonismo relevante. Não por acaso, como demonstraram os estudos do Iedi sobre a Indústria 4.0, os governos dos EUA, da Europa e da Ásia se movimentam para recolocar suas economias na senda da Nova Revolução Industrial.

Os zelosos guardiões do absenteísmo estatal não deveriam ver nisto nenhum indício de retrocesso ou ameaça. O investimento em infraestrutura executado ou organizado pelo setor público, assim como o investimento em tecnologia, não concorre com o investimento privado, mas, ao contrário, servem como indutores do gasto empresarial.

“The Enterpreneurial State: Debunking Public vs Private Myths”, de Mariana Mazzucato, e “Subsidies to Chinese Industry: Capitalism, Business Strategy and Trade Policy”, de Usha Haley e George Haley, tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais. Recorrem a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o ‘blá-blá-blá’ ideológico, não raro hipócrita, da falsa oposição entre Estado e mercado no capitalismo contemporâneo.

Os estudos cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados nacionais, os sistemas empresariais, os programas de inovação tecnológica e a “inserção internacional”. Procuraram chamar a atenção para a centralidade da “organização capitalista” em que prevalecem nexos, digamos, “cooperativos” nas relações entre empresas e burocracias civis, militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).

A ação do Estado não só garantiu o abastecimento do capital paciente e capaz de encarar o risco da inovação, como também ajudou a coordenar as relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores.

No caso chinês, é crucial a presença dos bancos públicos no provimento de crédito para permitir a apropriação da tecnologia, mediante a utilização das empresas estatais para a formação de joint ventures com o capital estrangeiro e promover a “administração estratégica” do comércio exterior. Essa arquitetura institucional não apenas assegurou excepcionais taxas de investimento e acumulação de capital, como também ensejou programas de “graduação” tecnológica.

A ação estatal cuidou, ademais, dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global. Não é difícil perceber: as estratégias chinesas de expansão acelerada, o impulso exportador, a rápida incorporação do progresso técnico e uma forte coordenação do Estado foram inspirados no sucesso anterior de seus vizinhos, sócios e competidores.

Voltando ao Brasil: a integração às cadeias globais vai certamente exigir políticas distintas daquelas executadas nos anos do nacional-desenvolvimentismo. A ênfase, agora, deve ser colocada na busca da construção de vantagens dinâmicas apoiadas em programas de inovação, sobretudo os articulados ao agronegócio, às novas fontes de energia, à infraestrutura e às grandes demandas sociais, como educação, saúde, mobilidade urbana, segurança.


*Economista, Professor Titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor de livros como Nos tempos de Keynes (São Paulo: Contracorrente, 2016).

Este artigo reúne considerações já exaradas pelo autor um outras ocasiões.

Imagem em Pixabay.

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