Opinião
Lula e o Colapso do Crescimento
Lula e o Colapso do Crescimento
De ANDRÉ MOREIRA CUNHA*
Esta não é uma vitória minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram nessa campanha. É a vitória de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias, para que a democracia saísse vencedora. (Luís Inácio Lula da Silva, 30/10/2022)
Um presidente, três mandatos e um mundo em crise
Ao tomar posse em 01 de janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva se tornará o primeiro mandatário a assumir a presidência do Brasil três vezes com o respaldo do voto popular. Ele encontrará um país dividido, com parcela da sociedade contaminada pelos discursos de ódio e pela desinformação disseminada nas redes sociais. A capacidade de governar uma sociedade plural e profundamente desigual, com uma base territorial tão grande e diversa e uma população de 214 milhões de pessoas já é, em si, uma tarefa complexa. Fazê-lo em um mundo marcado pela “recessão democrática” e o crescente questionamento das instituições estabelecidas é ainda mais complicado.
Em seu “Global Trends 2040”, o Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos alertava para o fato de que o “… crescimento econômico potencialmente mais lento nos próximos anos, com ganhos menores no desenvolvimento humano em muitos países, provavelmente exacerbarão a desconfiança nas instituições e nas fontes formais de autoridade por segmentos da sociedade … À medida em que diminui a confiança nos governos, nas elites e em outras instituições estabelecidas, as sociedades tendem a se fragmentar ainda mais com base em identidades e crenças”.
O caso brasileiro parece se enquadrar nestes marcos mais gerais. Em 2003, quando o presidente Lula assumia o seu primeiro mandato, a transição democrática parecia consolidada. A perspectiva de retorno às formas autoritárias de governo não se colocava no horizonte. Havia graves problemas sociais, políticos e econômicos, mas era possível supor que eventuais soluções seriam construídas dentro do espaço outorgado pela democracia. Hoje, tais certezas desvaneceram.
Há quatro décadas, o crescimento econômico entrou em colapso. O Brasil deixou de ser um dos países mais dinâmicos do globo e se converteu em um caso de frustração, com um crescimento médio anual da renda per capita equivalente a 1/5 do ritmo observado entre 1930 e 1980. Entre 1981 e 2021, o PIB per capita do Brasil apresentou uma variação média de 0,7% a.a., que é metade do padrão global (+1,5% a.a.) e dez vezes abaixo das economias emergentes da Ásia (+6,7% a.a.). Nenhum governo desde longo ciclo foi capaz de garantir a expansão contínua da renda em níveis sistematicamente superiores aos padrões observados nas economias mais dinâmicas da atualidade ou do que no nosso próprio passado. Se o crescimento econômico não resolve todos os problemas de uma sociedade, a falta dele tende a agravar velhos conflitos e estabelecer novos dilemas.
Do ponto de vista estritamente econômico, o principal desafio do próximo governo – e dos que vierem depois dele – é o de firmar bases sólidas para um ciclo longo de crescimento da renda. Espasmos de expansão, que logo se esgotam, até podem render dividendos eleitorais, mas não garantem a reversão do quadro estrutural de baixo dinamismo. Políticas de estímulo à demanda das famílias, sem a contrapartida do aumento na produção de bens e serviços e ganhos sistêmicos de eficiência, usualmente redundam em surtos inflacionários e/ou forte deterioração dos resultados em conta corrente do balanço de pagamentos. Para se combater o primeiro, particularmente por meio do “Real forte” (apreciação cambial), se compromete, ainda mais, o segundo.
No plano social, para além do crescimento, há que se fazer com que os seus ganhos se traduzam em melhorias nas condições de vida da população em geral, especialmente dos segmentos mais vulneráveis. Incrementos na renda são importantes, mas insuficientes. Por isso mesmo, a segurança social tem que ser buscada, o que se faz por meio de serviços universais, públicos, gratuitos e de alta qualidade, particularmente em áreas como saúde, educação, habitação, lazer e cultura. As desigualdades precisam ser reduzidas. Politicamente, deve-se estabelecer um centro gravitacional de consensos básicos, os quais darão sustentação parlamentar para uma agenda de crescimento com inclusão social que perpasse governos e não seja facilmente desconstituída conforme observamos depois de 2016.
Treze Fatos…
Não há atalhos para o processo de reconstrução nacional ou tempo a perder com medidas que já não deram certo no passado. Para avançar não é prudente ignorar a natureza das restrições existentes. Ao se colocar em perspectiva os vinte anos que separam a chegada do presidente Lula ao poder, em 2003, e a realidade contemporânea, destacamos os seguintes aspectos:
- A população cresceu e a urbanização se ampliou. Entre 2002 e 2022, houve um incremento de 35 milhões de pessoas (+19,5%) no país, o que equivale à soma das populações atuais de Bolívia, Chile e Uruguai. A taxa de urbanização passou de 82% (2002) para 87% (2021). Os grandes centros urbanos, cidades com mais de 1 milhão de habitantes, incorporaram 20 milhões de novos habitantes. Com isso, a demanda por saneamento, energia, telecomunicações, habitação, meios de transportes rápidos e eficientes etc., saúde, educação, lazer, cultura etc. também se multiplicou.
- E os investimentos estagnaram. Na média do período 1998-2002, os investimentos por habitante no Brasil eram de US$ 1.333/ano, em valores constantes de 2015, o que já estava abaixo da média mundial (US$ 1.7554/ano). Já entre 2018-2021, o indicador brasileiro ficou basicamente o mesmo, US$ 1.352/ano, ao passo que a média global avançou para US$ 2.861/ano, mais do que o dobro das cifras brasileiras. O declínio relativo do Brasil é mais intenso quando se compara com o desempenho das economias emergentes mais dinâmicas, como as asiáticas, em geral, e a China, em particular.
- O estoque de capital encolheu em termos relativos. A base de dados do FMI, em valores constantes (dólares de 2017), nos permite estimar que o estoque capital por habitante experimentou um incremento nos anos 2000, passando de uma média de US$ 30 mil na década de 1990 para um pico de US$ 40 mil, em 2017. Já como proporção do estoque de capital per capita dos EUA, revela-se um quadro distinto, com um indicador que recua constantemente, de 31% (anos 1990) para 28% (2018-2019). Como participação do total global, este indicador passou de 2,3%, no começo dos anos 2000, para 3,3% no início da década de 2010, voltando a experimentar uma queda relativa até atingir 2,5% em 2019.
- A eficiência produtiva tem sido cada vez menor. Com as informações do Conference Board (Total Economy Database), verifica-se que a taxa anual média de crescimento da produtividade do trabalho dobrou entre os anos 1990 (0,7% a.a.) e 2000 (1,4% a.a.), com posterior recuo na década de 2010 (0,4% a.a.). Nestas três décadas, este indicador ficou abaixo da média global, que foi de, respectivamente: +1,3% a.a., +2,7% a.a. e +0,9% a.a. Já a produtividade total dos fatores (PTF) da economia brasileira, que é uma medida-síntese da eficiência geral do sistema econômico, não dá sinais de avançar, pelo contrário, com variações de, respectivamente, -0,3% a.a., -0,1 a.a. e -1,4 a.a.
- A indústria de transformação encolheu. O Brasil experimentou um dos processos mais intensos de desindustrialização dentre as economias com parques industriais mais robustos e complexos. Em seu auge, nos anos 1980, a indústria de transformação respondia por algo entre 25% e 30% do valor adicionado. Atualmente este indicador está ao redor de 11%, o que equivale ao peso relativo dos setores agropecuário e extrativo somados. A produção de produtos manufaturados por habitante no Brasil (USD 890) equivale a menos da metade da média global (USD 1.990), em valores constantes, a preços de 2015. Trata-se, portanto, de um processo intenso de regressão produtiva e que não foi contido nos ciclos de governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, quando da reintrodução de políticas industriais ativas.
- As exportações de produtos manufaturados são pífias. Com 2,5% da população mundial, o Brasil responde por cerca de 1,2% das exportações globais de mercadorias e 0,7% das vendas internacionais de produtos manufaturados. Em termos per capita, exportamos algo como 1/5 da média global. Em 2007, o Brasil chegou a exportar USD 467 por habitante de manufaturas, em valores constantes, ante uma média mundial de USD 1.614. Em 2019, o valor brasileiro caiu para USD 332 e o mundial elevou-se para USD 1.636.
- Há poucas empresas brasileiras de destaque nos mercados globais. Nenhuma delas em setores intensivos em tecnologia. O debate convencional sobre as alternativas para impulsionar a economia brasileira costuma partir da premissa de que o Estado brasileiro é ineficiente, ao passo que o setor privado é eficiente. Esta imagem está claramente distorcida, posto que há importante problemas de eficiência nos dois setores. No caso da iniciativa privada, observa-se que as empresas brasileiras são introvertidas, investem pouco em inovação tecnológica e, por decorrência, são pouco competitivas internacionalmente. Poucas delas se destacam nos principais ranking globais. Na Fortune 500 de 2022 havia apenas sete empresas brasileiras, das quais duas controladas pelo governo federal e duas com importante participação acionária estatal. São elas: Petrobras (28ª posição), Banco do Brasil (125ª), Itaú Unibanco (138ª), Banco Bradesco (203ª), Vale (218ª), JBS (251ª) e Ultrapar Holding (430ª).
- Enquanto o país desprezava a capacitação das pessoas e reduzia investimentos em conhecimento, a fronteira tecnológica continuou avançando. As estimativas mais recentes do Congresso dos Estados Unidos mostram que o Brasil não consta do ranking das vinte maiores economias em termos de investimentos em pesquisa e inovação tecnológica, considerando valores em dólares internacionais em paridade poder de compra. EUA e China lideram a lista, seguidos de Japão, Alemanha e Coreia. Estes cinco respondem por mais de 70% dos gastos globais em inovação. Em termos de recursos humanos, o Brasil aparece na 91ª posição no ranking elaborado pelo Banco Mundial, de um total de 173 países com dados, em termos de um indicador síntese de capital humano. Este procura medir os efeitos da qualidade da educação e da saúde na produtividade do trabalho.
- A sociedade empobreceu. O Sistema de Contas Nacionais Trimestrais (SCNT) do IBGE nos informa que o PIB em 2022/II tem basicamente o mesmo nível daquele observado em 2014/I. Os anos de choques externos e internos negativos, quando o país entrou em um quadro grave de instabilidade política, crise institucional e regressão democrática, foram marcados pela queda da renda per capita em valores constantes (a preços de 2021). Assim, se entre 2002 e 2013, o PIB por habitante passou de R$ 32,4 mil para R$ 44, 1 mil (+38%); deste último ano até 2021, quando este indicador chegou a R$ 40,7 mil, verificou-se uma variação de -8%.
- As famílias consomem menos. Em agosto de 2022, o indicador de vendas do varejo, em termos reais (destocada a inflação) era de 98,5, em uma série na qual a média do ano de 2014 representa o índice 100. Isso significa que as pessoas compraram uma menor quantidade de bens e serviços naquele mês com respeito ao ano de 2014. Se tomarmos a média dos oito primeiros meses de 2018, aquele índice chega a 95,3.
- Os efeitos das mudanças climáticas são reais, trazendo riscos e oportunidades. Os eventos climáticos extremos se multiplicaram nos últimos anos, o que ampliou a percepção concreta de que os problemas derivados dos desequilíbrios são urgentes. O Brasil é centro dos problemas e das soluções em potencial, dada a importância das florestas tropicais, particularmente na região amazônica, para estabilizar alguns dos efeitos desta crise.
- A economia global desacelera e a instabilidade financeira se agrava. Não há sinais de crescimento robusto e estável na economia global no curto prazo. Pelo contrário. Conforme sintetiza o FMI: “A atividade econômica global está passando por uma desaceleração ampla e mais acentuada do que o esperado, com a inflação mais alta do que a observada em várias décadas. A crise do custo de vida, o aperto das condições financeiras na maioria das regiões, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a persistente pandemia de COVID-19 pesam muito nas perspectivas. Prevê-se que o crescimento global diminua de 6,0% em 2021 para 3,2% em 2022 e 2,7% em 2023. Este é o perfil de crescimento mais fraco desde 2001, exceto pela crise financeira global e pela fase aguda da pandemia de COVID-19.”
- Os conflitos geopolíticos e as guerras tendem a se multiplicar. Os EUA não parecem dispostos a recuar de sua posição assertiva em conter seus “rivais” estratégicos, particularmente Rússia e China. Por decorrência, as análises prospectivas sobre o desempenho econômico internacional enfatizam os riscos derivados das guerras e do processo de desmonte das conexões produtivas, tecnológicas e financeiras criadas nas últimas três décadas. A “desglobalização conflitiva” se desenha no horizonte próximo.
Muitos dilemas, poucas certezas…
“Somos um único país, um único povo, uma grande nação” disse o presidente Lula em sua primeira manifestação pública após a vitória do dia 30 de outubro. Esta frase de efeito não parece traduzir a realidade atual. Para reduzir a desconfiança e o rechaço de quase metade dos eleitores, o novo governo terá de buscar legitimidade por meio da entrega de prosperidade para a maioria, particularmente os segmentos estruturalmente excluídos. A única certeza no momento é de que esta tarefa será extremamente difícil e não se realizará em quatro anos. A maior tentação do governo é reproduzir os erros do passado: buscar saídas fáceis e rápidas que geram efeitos de curto prazo, mas não garantem a sustentabilidade de longo prazo dos processos de crescimento econômico com inclusão social. A frustração decorrente torna-se o combustível dos movimentos iliberais que tanto ameaçam a democracia.
*Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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