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Linguicídio desconhece o “pretoguês”
Linguicídio desconhece o “pretoguês”
Por EDELBERTO BEHS*
Diferente do idioma falado em Portugal, o português do Brasil, pela importante contribuição que recebeu de idiomas africanos trazidos pelos escravos, deveria se chamar “pretoguês”. A proposição é da antropóloga negra Lélia Gonzalez e vem corroborada pelo professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, Gabriel Nascimento, em seu livro “Racismo Linguístico: Os subterrâneos da linguagem e do racismo” (Editora Letramento, 2019).
Uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, Lélia Gonzalez também descreveu a América Latina como “amefricana”, para dizer que, apesar do branqueamento, há muitas razões para descrever boa parte da América Latina como proveniente de uma intensa racialização.
O signo “negro” não é um conceito natural. Ele foi criado pela branquitude. “Ou seja, os negros africanos, antes de serem colonizados e sequestrados, não se chamavam como ‘negros’ ou reivindicavam para si a identidade ‘negra’ como ‘naturalmente’ deles”, escreve Nascimento.
Negros e indígenas foram e são vítimas de um “epistemicídio” traduzido num “linguicídio”. A filósofa e escritora Aparecida Sueli Carneiro define o “epistemicído” como o extermínio do conhecimento do outro. “É o formato pelo qual a colonialidade sequestra, subtrai tudo o que puder se apropriar a apaga os saberes e práticas dos povos originários e tradicionais”, explica a ativista diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra.
O epistemicídio também está relacionado ao linguicídio. Segundo Sueli, o combate às línguas já faladas pelos povos originários negros e indígenas figura como um dos primeiros atos do mito da brasilidade linguística. O professor alemão Wolf Dietrich, vinculado à Universidade Federal do Paraná, lembra que quase um século depois da chegada do europeu ao Brasil, índios e portugueses tinham como principal idioma de comunicação a Língua Geral, com base no tupi, língua falada pelos Tupinambás.
Foi o marquês de Pombal, com suas reformas, que implantou uma política que impediu o uso da Língua Geral como idioma de comunicação da população que vivia no Brasil. Nascimento pergunta por que, num país com mais de 180 línguas indígenas o português, além da Língua Brasileira de Sinais – Libras, é a única língua oficial do país?
“Assim, não se pode afirmar a língua como um lugar pacífico. A língua é um lugar de muitas dores para muitos de nós”, confessa Nascimento. O estudioso negro oriundo da Martinica, Frantz Fanon, entende a língua como uma marca de dominação e por onde também acontece a figura estruturante do racismo. Para Nascimento, “o racismo é produzido nas condições históricas, econômicas, culturais e políticas, e nelas se firmam, mas é a partir da língua que ele materializa suas formas de dominação”.
Para o filósofo, historiador e professor universitário camaronês Achille Mbembe, a negritude não é um conceito de autoidentificação dos negros, “mas uma imposição perversa” através de sinais, como a manutenção da visão da miséria relacionada a países da África, ou a piadas racistas e provérbios populares negativos.
O ocidente, frisa Nascimento, usou a linguagem para racializar sujeitos na América desde 1492 e como objeto para fortalecer os regimes colonialistas, nomeando e conceituando o mundo numa visão eurocêntrica. Assim, “o mundo ocidental produziu nos ‘outros’ os signos de dominação ao chamá-los de ‘raça’ ao passo que, ao criar essas definições, criou o branco, cristão, civilizado, heterossexual e burguês”, escreve o professor baiano.
Mas, continua, ao subjugar o negro, “o próprio branco se desumanizou, transformando-se, ele próprio, em animal, e assim invocando o esgotamento do próprio projeto do humanismo”, levando, inclusive, a sistemas perverso, como é o caso do fascismo.
Recorrendo ao poeta, dramaturgo e político da negritude, Aimé Fernand David Césaire, o professor Nascimento constata que o racismo cria suas marcas também na branquitude. “Um Hitler, um Trump ou um Bolsonaro não nascem à toa. Antes do fascismo, o racismo é a condição estruturante que permite que, nessas sociedades, tanto o colonizador quanto o colonizado enfrentem os fantasmas da raça criados pelo colonizador”.
*Edelberto Behs é Jornalista, Coordenador do Curso de Jornalismo da Unisinos durante o período de 2003 a 2020. Foi editor assistente de Geral no Diário do Sul, de Porto Alegre, assessor de imprensa da IECLB, assessor de imprensa do Consulado Geral da República Federal da Alemanha, em Porto Alegre, e editor do serviço em português da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC).
Ilustração da capa: Paula P. Rezende.
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