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Opinião

Lições da Selva

Lições da Selva

Artigo por RED
24/06/2023 05:25 • Atualizado em 26/06/2023 09:48
Lições da Selva

De JACQUES GRUMAN*

O caso das quatro crianças indígenas que sobreviveram a um acidente de avião na Colômbia, que caiu em mata densa e de difícil acesso, me mobilizou bastante. Elas vagaram por 40 dias em terreno perigoso, lamacento, escuro (lá estão as maiores árvores da região), com clima frio, insetos e muita umidade. Por lá circulam onças e cobras venenosas. Uma delas, a verrugosa, é das mais peçonhentas da América. A vegetação é, com frequência, ameaçadora. Plantas venenosas podem matar quem as consome. Existem muitos aspectos nesta pequena, e quase inacreditável, saga.

Lesly, menina de 13 anos, liderou os irmãos Soleiny (9 anos), Tien (4 anos) e Cristin (completou 1 ano na mata). Providenciou abrigos provisórios com grandes folhas e gravetos, comida (principalmente frutas), água (coletada em folhas úmidas) e, certamente, o estímulo necessário para não desistirem. Nós, urbanoides, custamos a crer que isso foi possível. Alex Rufino, indígena Ticuna especialista em cuidados da selva, nos ensina: “As crianças intuitivamente aprendem muito com seus pais. Quando vão caçar, para colher frutas. Sua observação é essencial. Eles estão aprendendo o que pode ser útil para eles e o que não é (…) Cada árvore, cada planta, cada animal indica onde estamos, o que está disponível e quais são as ameaças. E as crianças sabem interpretar isso”.

O meio ambiente para os indígenas é um organismo vivo, complexo, cujo conhecimento, acumulado por gerações e desdobrado em dimensão não apenas física, é vital para a sobrevivência. Foi isso, tenho certeza, já assimilado pelas crianças (na proporção de suas idades), que permitiu mantê-las vivas. Não encontro outra explicação num caso em que as equipes de busca, treinadas em terrenos hostis e com equipamento especializado, ficaram surpresas com o comportamento maduro de crianças tão pequenas.

Alguns afoitos disseram que o resgate foi um “milagre”. Volto ao Alex Rufino: “Os territórios indígenas sempre foram vistos com uma narrativa herdada da conquista, da religião católica, porém não falamos de milagres, mas da ligação espiritual com a natureza. Milagre é a palavra que vende, mas eu falaria mais do abraço da mãe que é a selva, da mãe que cuida de você”. Aí está, a Terra-Mãe, a Pachamama dos irmãos andinos, a mesma que estamos nós, os “civilizados”, tratando de destruir metodicamente.

Tento me imaginar em situação semelhante quando tinha 13 anos. O Menino, largado em Barros Filho, Marechal Hermes ou Sampaio, subúrbios cariocas, ficaria perdido para sempre. Num limbo assustador. Não tinha iniciativa, era totalmente dependente dos adultos e desconhecia o funcionamento dos mecanismos mais básicos do cotidiano. Entendia de futebol de botões, decorava lições para o colégio, era um lateral-esquerdo razoável. Índios? Dizia-se que gostavam de apito, na televisão o curumim era o logotipo da Tupi, Tonto não passava de serviçal do Lone Ranger. Natureza? No máximo o capim-navalha, abundante no matagal que cercava a vila de casas, e a pedreira no final da vila, com suas cavernas misteriosas. Cresci ignorante do meu planeta, achando natural ver bicho apenas no zoológico ou na gaiola de casa, orientado por asfalto e concreto.

O avô das crianças indígenas agradeceu à Mãe-Terra que as libertou. Podemos achar um tanto folclórica essa crença, mas, cá entre nós, que autoridade temos para isso? Nossa vã sabedoria produziu uma sociedade que polui águas, envenena o ar, esteriliza a terra. Uma sociedade supremacista, que exterminou 5 milhões de indígenas desde 1500, tratando-os como animais, e agora quer terminar o serviço sujo impondo o Marco Temporal. Uma sociedade arrogante, que sufoca culturas ancestrais e as condena ao ostracismo e à galhofa.

Para quem tem olhos de ver, Lesly e seus irmãos salvaram muito mais do que a si mesmos. A tradição dessas crianças, invocada apenas no lusco-fusco midiático, nos dá oportunidade de enxergar a vida no planeta de maneira diferente. Como uma unidade, sem hierarquias. A vida de uma formiga, uma borboleta ou um tubarão branco tem o mesmo valor do que a nossa, símios pelados que somos, carregando um imperador e cinco empáfias nas barrigas estufadas. Convém ouvir o que disse Ailton Krenak sobre a Terra-Mãe: “Seria como uma mãe, um dia pela manhã, reunir os filhos e ela sentir que os filhos estão dizendo: a gente não quer ficar aqui com você. A Terra está ouvindo isso da gente. Ela está sentindo isso da gente. E a maior parte desses filhos não estão nem aí. Eles estão mesmo a fim de ir para Marte”. Quem avisa, amigo é.


*Engenheiro químico. Ex diretor e presidente do Sindicato dos Químicos e Engenheiros Químicos/RJ. Diretor e presidente da ASA – Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação, tradicional entidade judaica progressista do Rio de Janeiro.

Imagens curadas e disponibilizadas pelo autor.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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