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Opinião

Liberdade para escolher

Liberdade para escolher

Cultura por RED
25/06/2023 10:56 • Atualizado em 27/06/2023 09:04
Liberdade para escolher

De LÉA MARIA AARÃO REIS*

Desfecho de ‘Tempestade de areia’ e ‘A voz do Empoderamento’ reforçam a mensagem de que os dias atuais são das mulheres jovens que desafiam poderes masculinos autoritários, costumes antiquados que não se encaixam mais no presente e rituais religiosos cruéis que estão em declínio

Dois filmes de origens opostas, com linguagens cinematográficas divergentes, mas em exibição simultânea no streaming, abordam o mesmo tema com conclusões de modo geral distintas. De qualquer modo, com o desfecho de ambos, os dois filmes reforçam, em certo aspecto, esse recado: os dias de hoje são tempos das mulheres jovens que se defrontam e afrontam poderes masculinos autoritários, anacrônicos costumes não mais encaixados no presente e ritos religiosos cruéis e em vias de desuso.

Um desses filmes, de supetão chega de Israel, dirigido por uma ex-estudante da Universidade de Tel-Aviv, Elite Zexer, de 43 anos. Tempestade de areia (Sufat Chol) é o seu primeiro longa-metragem e tem como pano de fundo o rito religioso dos casamentos poligâmicos celebrados nos vilarejos de beduínos  israelenses. Os homens se casam com diversas mulheres que se tornam suas esposas simultâneamente, as quais devem conviver umas com as outras como que num arremedo dos haréns islâmicos do passado.

O outro filme vem de Bollywood, o principal polo da indústria cinematográfica indiana, em Bombaim (Mumbai), núcleo do grande conjunto de produções portentosas, com mis-en-scène barroca esbanjando símbolos da riquíssima cultura nacional, filmes que vêm sacudindo o cinema e competidores de Hollywood. Derramaram no mercado, em 2017, apenas na Índia, cerca de dois mil longas-metragens. No streaming brasileiro esses produtos boollydianos entraram com toda força e engrossam cifras astronômicas como no caso de A voz do Empoderamento (Gangubai Kathiawadi), de Sanjay Leela Bhansali, de 2022. (Em tempo: o seu título em português não poderia ser pior).

Nos dois filmes é narrado o que pode suceder quando o despertar de necessidades de mulheres jovens, antes submetidas, humilhadas e incompreendidas, exige liberdade de escolhas e não mais o assentimento a tudo que é preciso ser feito.

Em Tempestade de areia, em uma aldeia beduína do sul de Israel, Jalila, primeira mulher de Suliman, é quem organiza a festa da celebração do segundo casamento do seu marido com uma mulher mais jovem. Ela reprime sua raiva enquanto a filha, Layla, mantém em segredo um namoro proibido com o jovem Anuar, seu colega de faculdade.

Quando a moça percebe que o pai procura um homem escolhido por ele para casá-la como manda a regra islâmica, Layla contesta: “Por que é preciso você seguir sempre  o que deve ser feito? Sempre existe outra opção”. Ela invoca a autonomia e a liberdade de escolhas do indivíduo contra um mundo estratificado em hierarquias e em usos e costumes cujos códigos  oprimem e não têm mais sentido, mesmo quando religiosos.

O pequeno filme, com menos de uma hora e meia de duração, é interessante por não ser maniqueísta ao apresentar os perfis dos  personagens originais. A mãe, as filhas e o patriarca, esse um bom homem, estão todos instalados num lar tranquilo anterior à  chegada da segunda esposa. O rápido diálogo, um tanto enigmático, da segunda esposa com a jovem Layla faz entrever ao espectador a sua possível motivação de casar com Suliman. É mais um aspecto que o filme nos traz: a eventual justificativa das livres escolhas quando há interesses materiais.

O melodramático A voz do empoderamento, de Leela Bhansali é inspirado no livro Mafia Queens of Mumbai (Rainhas da máfia de Bombaim), publicado em 2011 pelo jornalista investigativo Hussain Zaidi. O cineasta viveu durante anos nas redondezas do célebre bairro da prostituição de Kamathipura, em Bombaim, o maior de toda a Ásia. Como quase todas as histórias filmadas em Bollywood o seu tom beira o de um conto de fadas. Contém amores mal sucedidos, dramas familiares, sacrifícios, heróis e vilões, famílias separadas e algumas canções  e números de dança ajudando a empurrar a narrativa – e a bilheteria.

O livro e o filme contam uma história real e especial: a da lendária ativista social e prostituta, Gangubai Kothewai, de família abastada e filha de um advogado de pequena cidade do interior que morreu em 1970. Ela fugiu com o contador do seu pai para Bombaim sonhando tornar-se atriz de cinema e acabou sendo vendida pelo pilantra para um bordel.

A bela e enérgica Gangubai acaba dirigindo seu próprio bordel e torna-se lobista e ativista dos direitos das prostitutas. Seu personagem foi respeitado na sua época e a repercussão do seu trabalho social foi imensa.

Gangubai chegou a ser recebida em audiência pelo Primeiro-Ministro Nehru, o líder carismático da independência indiana e herdeiro político de Gandhi, como se vê em uma ótima sequência do filme, os dois discutindo sobre direitos das prostitutas.

O roteiro não tem novidades: uma mulher de carisma reúne forças e coragem para se impor ao mundo adverso à sua volta e consegue agrupar e organizar as colegas para lutarem por direitos sociais. A voz do  poder de persuasão social e político da bela Gangubai vai longe, mas não é o bastante para auxiliá-la a viver a sua particular história afetiva com um jovem alfaiate; o mesmo que ocorre com a beduína Layla, como a(o) espectadora(o) verá.

(Os dois filmes estão na Netflix)


*Jornalista carioca. Foi editora e redatora em programas da TV Globo e assessora de Comunicação da mesma emissora e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Foi também colaboradora de Carta Maior e atualmente escreve para o Fórum 21 sobre Cinema, Livros, faz eventuais entrevistas. É autora de vários livros, entre eles Novos velhos: Viver e envelhecer bem (2011), Manual Prático de Assessoria de Imprensa (Coautora Claudia Carvalho, 2008), Maturidade – Manual De Sobrevivência Da Mulher De Meia-Idade (2001), entre outros.

Imagem destacada: A voz do Empoderamento (Reprodução).

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

 

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