Opinião
Lembremo-nos da linguiça
Lembremo-nos da linguiça
*De LOURENÇO CAZARRÉ*
Ao intitular de O menino que corria atrás das notícias (Insular, 2021) seu livro de estreia, o jornalista Mário Medaglia (Porto Alegre, 1944) reafirma o enraizado hábito que têm redatores e editores de jornais e revistas de buscar sempre, independentemente da exatidão, o título que mais chame a atenção dos leitores. Na verdade, jornalistas que fazem títulos estão se lixando para essa propensão careta que têm os burgueses pela verdade verdadeira.
Expliquemo-nos. Grande contador de causos, na maioria derivados do ópio do povo (o onipresente futebol), Medalhão – apelido carinhoso, mas nem tanto, que dei a ele – gosta de lembrar que quase tomou uma coça dos machões de Chapecó por culpa de um título apimentado da revista Placar.
Em meados dos anos 1970, correspondente da Placar em Santa Catarina, ele foi enviado para cobrir um jogo da nascente Chapecoense. Antes, ainda em Florianópolis, havia escrito uma bela reportagem, positiva, sobre a chegada à elite do futebol dessa equipe hoje tão conhecida. Ocorre, porém, que, lá por São Paulo, o editor Juca Kfouri resolveu condimentar a manchete. Como a Chapecoense era financiada por uma empresa de alimentos processados, tascou no alto da página: “A linguiça paga”. Revolta no Oeste catarinense e quase o Medalhão recebe umas sarrafadas.
Corta para 50 anos depois. Mário está prestes a lançar seu livro de memórias. Como titulá-lo?
Medalhão se lembra então dos distantes anos 1950, quando, em companhia dos pais e das irmãs, veraneava nas praias do quase deserto litoral norte do Rio Grande do Sul. O episódio que lhe ficou mais claro na memória era a passagem, no meio da tarde, de um avião que – a serviço do jornal Folha da Tarde – lançava aos cômoros de areia dos pequenos balneários grossos pacotes de jornais para os assinantes em férias. Junto com outros guris e gurias, o pequeno Medalhão, de olhos azuis e panturrilhas grossas, corria até o pacote.
Assim nasceu o título.
Pois bem, esse belo e sinuoso título – O menino que corria atrás das notícias – nos leva a crer que o Mário, desde pequenino, sentiu uma forte inclinação pelo jornalismo impresso. Nada disso. Não, não, o título não nos indica o que vem pela frente. Lembremo-nos da linguiça. Não, eu não diria que o título seja inexato ou enganoso. É apenas poético, delicado.
Reafirmo: Mário não mostrou nenhuma vocação precoce pelo periodismo gráfico. Não mesmo. O que ele adorava era ouvir rádio, isso, sim, como seu pai, aliás, como todos os pais dos que nasceram no Rio Grande do Sul na primeira metade do século passado.
Corta para adolescência e começo da maturidade, que ainda vai demorar muito. O que era o Medalhão? Segundo suas confissões, um mandrião. Adorava cabular as aulas. Gostava mesmo era de flanar pela ainda tranquila Porto Alegre, para desespero do velho Ottorino, funcionário público exemplar. A mãe, dona Maria Alice, embora professora, sofria menos porque o rapaz era fofo, carinhoso e dotado de uma voz melosa capaz de amolecer até o mais empedrado coração feminino.
Passemos ao exame acurado da obra. O livro, em si, e enquanto livro (como diria um crítico francês) é ótimo. Eu o li com atenção e interesse embora conhecendo a maioria das histórias ali narradas, porque o Medalhão é um grande contador de causos, no gogó e no teclado.
Algo que me deixou pasmo – porque fui o único jornalista da turma de 1975 da Católica de Pelotas a acreditar que os jornalistas devem ser isentos – foi a confissão de que ele, Medalhão, torce para um time, de nome impronunciável, da capital gaúcha. Entrega que certa vez, ao chegar ao campinho do referido pequeno clube, para assistir a uma decisão do campeonato nacional entre o time da horrenda camiseta vermelha e o glorioso Cruzeiro – dono do mais lindo dos uniformes de Pindorama! – sentiu frouxidão nas pernas e fortes palpitações no bobo. Algo que, em Pelotas, nomeamos em francês: chilique. Refugou a catraca. Não entrou. E olha que ele estava na companhia do efervescente e performático Paulo Brito, o Cabrinha.
Voltando ao passado remoto: depois de vender até mesmo árvores de natal e túmulos, o gajo mandrião prestou, a pau e corda, exame de madureza e ingressou em 1968 na Faculdade de Jornalismo. Estava com veteranos 23 anos.
Um quadriênio mais tarde, tendo adotado um look hippie, de cabelo nos ombros e barba tipo babeiro, já diplomado, desembarcou em Blumenau. Não se sentiu muito em casa diante da germânica firmeza com que as donzelas daquela urbe defendiam sua intimidade. Transferiu-se logo para a ensolarada e bucólica Desterro, onde mora até hoje.
Basta! Vamos tentar, nas poucas linhas que nos restam, falar seriamente de O menino que corria atrás da notícia. É uma enfiada de contos, muitos deles hilários, de cartolas esquisitos, árbitros bizarros e jogadores casca grossa. Todos esses contos são narrados em tom “medalhístico”, que, como sabem seus incontáveis amigos, é uma mistura bem dosada de humor e casmurrice. Boa leitura!
*Escritor. Já foi agraciado com o Prêmio Jabuti e com outros mais de vinte prêmios literários.
Imagem: divulgação capa do livro O menino que corria atrás das notícias (Insular, 2021).
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