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Lei de cotas em concursos: entenda por que universidades sorteiam vagas para contratar professores negros
Lei de cotas em concursos: entenda por que universidades sorteiam vagas para contratar professores negros
Desde 2014, instituições de ensino federais devem reservar 20% das vagas para docentes pretos e pardos. Foi necessário, no entanto, que o STF agisse para que a regra fosse, de fato, respeitada no ensino superior.
Há 8 anos, o Brasil tenta diversificar o perfil racial dos professores das universidades públicas, mas apenas cerca de dois em cada 10 docentes são pretos ou pardos, de acordo com os dados mais recentes disponíveis.
Desde 2014, é obrigatória a reserva de 20% das vagas de concursos públicos federais para candidatos destes grupos. Porém, as instituições de ensino só passaram a cumprir as cotas a partir de 2018, por causa de uma interferência do Supremo Tribunal Federal (STF).
Segundo especialistas ouvidos pelo g1, havia uma “manobra” para que não fosse reservado o espaço a professores negros.
Apenas depois de uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, de junho de 2017, que a academia começou a encontrar alternativas para garantir a diversidade do corpo docente. A principal delas, uma espécie de “sorteio de vagas”, está sendo implementada gradualmente.
Reserva de 20% de vagas: o que a lei estabelece?
Em 2014, a Lei 12.990, válida por 10 anos, estabeleceu que 20% das vagas disputadas em concursos públicos federais deveriam ser reservadas para candidatos autodeclarados pretos ou pardos. Mas, nas universidades, o índice não foi respeitado, mostram dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Entre 2014 e 2019, das 18 mil vagas abertas nestas instituições, pouco mais de 5% foram exclusivas para docentes negros. No Nordeste, só 2,6%.
Resultado: sem que o patamar de 20% de cotas fosse seguido, aumentar a diversidade racial no corpo docente continua sendo um desafio – apenas 23,4% dos professores universitários são negros, mostram os dados mais recentes do IPEA, de 2020. Quase 70% são brancos (veja acima).
Em outros setores, a lei provocou uma mudança mais nítida no perfil dos servidores: no Executivo federal, por exemplo, em 2013, 32,1% eram negros; em 2020, seis anos após as cotas, o índice saltou para 43,5%.
“A diversidade é importante para trazer novos olhares e referências nas pesquisas. Isso tem sido demandado por alunos. Precisamos de mais representatividade”, afirma Anna Venturini, pesquisadora do Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial).
Como funcionou a tal “manobra” para driblar a lei?
Como foi possível que as instituições de ensino não seguissem as ações afirmativas? A resposta está em um dos artigos da lei, que afirma que “ela será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três).”
“Entra aí uma estratégia de algumas universidades: se são 100 vagas, em vez de abrirem um edital com várias, elas ‘quebram’ [os processos seletivos] em 100 ‘concursinhos’. Como cada um só vai ter só uma vaga, não precisará de cota. É algo deliberado”, afirma Adriano Senkevics, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Para Roseli Faria, consultora da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras (ABPN), houve, de fato, “uma leitura contrária à lei nos concursos para professores universitários”. “Essa fragmentação das vagas ficou evidente”, diz.
Procurada pelo g1, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) afirmou que não comentaria as afirmações acima.
Quais são as alternativas? Como funciona o sorteio de vagas?
Foi a partir desta discussão de desrespeito aos 20% de cotas que o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu, em junho de 2017, que seria necessário “adotar medidas alternativas para ampliar a representação racial” nos casos de concursos com menos de três vagas. As universidades passaram a pensar em opções a partir do ano seguinte.
Luiz Augusto Campos, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), explica que uma das estratégias para garantir as cotas mesmo em concursos pequenos é fazer sorteios.
“Se forem, por exemplo, 20 vagas para professor, uma em cada departamento da universidade, um sorteio define quais delas serão ocupadas por negros”, explica.
É o que faz a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), por exemplo. Em 2019, foram ofertadas 17 vagas em um edital – calculando os 20% de cotas, 3 foram reservadas para pretos e pardos. O sorteio determinou que seriam nos departamentos de Clínica Médica (Faculdade de Medicina), de Parasitologia (Instituto de Ciências Biológicas) e de Educação Física (Instituto de Ciências da Vida).
Em 2021, uma resolução interna da UFJF estabeleceu que estes sorteios deveriam acontecer em todos os concursos para docentes, mas só após as inscrições. “Não é sempre que temos negros inscritos. Por isso, só fazemos a distribuição dos 20% de cotas entre os departamentos que tiveram algum preto ou pardo participando do processo seletivo”, explica Julvan Moreira de Oliveira, diretor de ações afirmativas da instituição.
Também no ano passado, um edital da Universidade Federal de Sergipe (UFS), por exemplo, ofertou 13 vagas, uma em cada departamento. Para garantir que houvesse o respeito às cotas, foram sorteados 3 desses concursos para serem disputados apenas por candidatos negros (engenharia civil, engenharia de pesca e psicologia).
O mesmo aconteceu na Universidade Federal do Paraná (UFPN), como mostra o documento abaixo:
Outra alternativa, mais abrangente que os sorteios, é fazer o que Luiz Augusto Campos chama de “escalonamento de branquitude”.
“Se o departamento for 100% branco, só deve contratar negros até eles alcançarem pelo menos 20% [do corpo docente]. É um empurrão emergencial”, afirma.
‘Seleção para professores costuma ter um viés’, diz especialista
“Se não fosse a política de cotas, eu não estaria dando aula em uma universidade, mesmo com toda a minha formação e experiência. Não posso ser colocada na mesma vala que todo mundo, sem considerar as desigualdades raciais”, diz Cláudia Carvalho, professora aprovada por cotas na Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD) e atual coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da instituição.
Pela ampla concorrência, é realmente difícil que professores negros conquistem uma vaga, por causa do modo como os processos seletivos são estruturados na academia, explica Oliveira, da UFJF.
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