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Opinião

Lava Jato, essa desconhecida

Lava Jato, essa desconhecida

Artigo por RED
01/04/2023 05:25 • Atualizado em 03/04/2023 10:04
Lava Jato, essa desconhecida

De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris

Jornalistas do Brasil fingem ignorar a ingerência dos Estados Unidos na Justiça brasileira

Os jornalistas brasileiros da “grande” imprensa reassumiram o papel de cães de guarda dos donos da mídia, do capital e dos interesses do “grande irmão do Norte”.

Não deram trégua.

O presidente Lula, o PT e os atos do novo governo são o alvo preferencial de críticas irracionais e recorrentes que nos dão uma cansativa impressão de déjà vu. É  a reedição da ofensiva maciça nos dois mandatos anteriores. Os cães de guarda defendem em bloco a independência do Banco Central que mantém os juros mais elevados do planeta. E criticam o presidente em todas as suas iniciativas e falas.

Esta semana li que “a saúde mental do presidente preocupa”. “Segundo se comenta em Brasília, ele chora demais e diz coisas que não fazem sentido”, escreve um jornalista num jornal de Recife citando a colunista Eliane Cantanhêde, do Estadão e da Globo News, que, segundo ele, “conseguiu captar esse sentimento” de que algo não vai bem com o presidente.

O texto diz que Lula fez uma “acusação infundada” ao dizer que houve conluio do Departamento de Justiça dos EUA com a Lava Jato “para prejudicar as empresas brasileiras em licitações internacionais”.

Acusação infundada?

Cantanhêde teria comentado: “Uma história rocambolesca, sem pé nem cabeça, dessas que qualquer um pode lançar numa mesa de bar, numa roda de amigos, mas o presidente ?”

Cinismo ou desinformação da jornalista ?

Se é desinformação, vou aceitar o desafio e provar que o presidente tem razão.

Será que jornalistas que se vendem por salários milionários não leram o maior trabalho de investigação publicado na imprensa mundial sobre a Lava Jato? A reportagem Le naufrage de l’opération anticorruption Lava Jato au Brésil (O naufrágio da operação anticorrupção Lava Jato no Brasil), assinada por Gaspar Estrada e Nicolas Bourcier (ex-correspondente no Brasil) tinha quatro páginas inteiras e foi publicada no jornal Le Monde de 9 de abril de 2021. É um arquivo para a História.

O subtítulo diz : A maior operação anticorrupção da história do Brasil tornou-se seu maior escândalo judiciário. Após meses de investigação, Le Monde mostra o avesso desse cenário.

O melhor do que se fez como jornalismo investigativo sobre a Lava Jato foi um trabalho de meses de entrevistas e pesquisa em fontes americanas e brasileiras,  inclusive a embaixada americana em Brasília, que teve papel central na arquitetura da Lava Jato, assim como o Departamento de Justiça e do Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Alguns trechos que selecionei do texto de Bourcier e Estrada e que traduzo a seguir servirão para informar os distraídos. Le Monde levantou cada etapa da preparação das leis, das reformas sucessivas do Judiciário e o modus operandi elaborado pelo governo americano para desestabilizar o Brasil e influenciar na política interna sem deixar as digitais, como acontecia nas décadas de 1960 e 1970, com golpes de Estado para mudança de regime na América do Sul.

Meus comentários aparecem em negrito. O texto do Le Monde vem em itálico:

(…)

Sérgio Moro, que colabora ativamente com as autoridades americanas no contexto do caso Banestado, foi então procurado para participar de um programa de encontros, financiado pelo Departamento de Estado. Ele aceita. Uma viagem é organizada aos Estados-Unidos em 2007,  durante a qual ele faz uma série de contatos no FBI, no Departamento de Justiça e no Departamento de Estado (Relações Exteriores).

A Embaixada americana procura aumentar sua influência. Para estruturar uma rede alinhada com suas orientações nos meios judiciários brasileiros, ela cria um posto de conselheiro jurídico ou « resident legal advisor ». A escolhida é Karine Moreno-Taxman, uma procuradora especializada na luta contra a lavagem de dinheiro e o terrorismo.

Desde 2008, esta especialista desenvolve o “Projeto Pontes” que, disfarçado de apoio às necessidades das autoridades judiciárias brasileiras, organiza formações que utilizam os métodos de trabalho americanos (grupos de trabalho anticorrupção), sua doutrina jurídica da delação premiada, bem como  a vontade de compartilhar informação de maneira « informal », isto é, fora dos trabalhos bilaterais de cooperação judiciária. Ela ensina que é preciso correr atrás  do « rei ». « A fim de permitir que o poder judiciário possa condenar alguém por corrupção, é necessário que o povo deteste esta pessoa ». « A sociedade deve sentir que esta abusou de seu cargo e exigir sua condenação.

Estava formalizada claramente a estrutura da maior campanha midiática nacional de demonização do ex-presidente Lula e do PT.

(…)

Sergio Moro participa do encontro como palestrante. Em dois anos, o trabalho de Karine Moreno-Taxman dá frutos :  a embaixada constitui uma rede de magistrados e de juristas convencidos da pertinência do uso das técnicas americanas.

(…)

O magistrado de Curitiba é nomeado, no início de 2012, juiz-assistente de Rosa Weber, eleita para o Supremo Tribunal Federal. Esta, especialista do direito trabalhista, quer ter alguém com conhecimento de direito criminal para assessorá-la no julgamento final do “Mensalão”.

Sergio Moro redige, em parte, a decisão polêmica  da juíza  neste caso:

 “Os delitos ligados ao poder são, por natureza, levando em conta a posição de seus autores, dificilmente demonstráveis por provas diretas, daí a maior elasticidade na aceitação das provas por parte da acusação”. Um precedente que será retomado ao pé da letra pelo juiz e pelos procuradores da Lava Jato no momento da acusação e da condenação de Lula.

A engrenagem começa em 2013. Os parlamentares brasileiros, que debatem o projeto de lei de luta anticorrupção há três anos, decidem começar o voto no mês de abril. Para agradar o grupo de trabalho da OCDE, eles incluem a maioria dos mecanismos previstos numa lei americana, que começa a ser comentada nos meios empresariais : a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA).

(…)

Segundo o procedimento penal brasileiro, isto deveria determinar que um juiz dessa jurisdição se ocupe deste caso – e não Sérgio Moro. Mas o magistrado de Curitiba compreendeu os meandros do poder judiciário brasileiro. Sabe que dissimulando a localização das empresas de fachada ele poderá manter consigo as investigações.  Sob a condição que as instâncias superiores permitam. E é o que vai acontecer, apesar dessa quebra das regras do procedimento legal.

(…)

Desde o mês de agosto de 2013, alguns juristas veem o perigo da aplicação da nova lei anticorrupção. Uma nota premonitória, publicada pela seriíssima banca de advogados americana Jonas Day, prevê que ela terá efeitos deletérios sobre a Justiça brasileira. Ele chama atenção para seu funcionamento “imprevisível e contraditório” devido a seu caráter “influenciável” sob o plano político, bem como a ausência de procedimentos de “aprovação de contrôle”. Segundo o documento, “cada membro do ministério público é livre de iniciar um caso em função de suas próprias convicções, com uma possibilidade reduzida de ser impedido por uma instância superior”.

No dia 29 de janeiro de 2014, a lei anticorrupção entra em vigor. No dia 17 de março, o grupo de trabalho « Lava Jato » é formalmente constituído pelo procurador geral da República, Rodrigo Janot. Para dirigi-lo, ele nomeia o procurador Pedro Soares, que é contrário a que o caso seja entregue a Sergio Moro já que os delitos de que é acusado Alberto Youssef não se deram em Curitiba. Ele será vencido. Soares será substituído por outro procurador, Deltan Dellagnol, 34 anos, que não somente será favorável a que Moro se ocupe do caso como se tornará o principal apoio do magistrado.

O texto do Le Monde se torna mais e mais explícito sobre o objetivo deste processo:

A fim de marcar seu apoio político às ações de luta contra a corrupção organizadas pelo governo, a Casa Branca publica uma “agenda global anticorrupção” em setembro de 2014. Está escrito que a luta contra a corrupção no estrangeiro (através da lei FCPA) pode ser utilizada com fins de política externa, a fim de defender os interesses da segurança nacional. Um mês mais tarde, Leslie Caldwell, na época procurador-geral adjunto do Departamento de Justiça, faz um discurso na universidade de Duke no qual torna clara esta orientação: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que fornecemos à comunidade internacional mas sim uma medida de aplicação necessária para proteger nossos próprios interesses em matéria de segurança nacional e capacidade de nossas empresas americanas a serem competitivas em escala mundial.”

(…)

Abaixo vemos o quanto o presidente Lula está bem informado, contrariamente a jornalistas brasileiros :

No terreno sul-americano, os gigantes brasileiros da construção civil Odebrecht, OAS ou Camargo Correa, em plena expansão, entraram na mira das autoridades americanas. Não somente porque eles conquistam mais contratos que os americanos mas também porque participam da influência geopolítica do Brasil na América Latina e na África financiando, ilegalmente na maioria dos casos, as campanhas eleitorais de personalidades próximas do PT, dirigidas pelo consultor em comunicação do partido, João Santana.  Apenas em 2012, o estrategista eleitoral (marqueteiro) financiado pela Odebrecht organiza três campanhas presidenciais na Venezuela, na República dominicana e em Angola, sem esquecer a eleição municipal de São Paulo. Todas foram vencidas pelos candidatos de Santana.

Por ocasião de uma conferência na sede do think tank Atlantic Council, em Washington, Kenneth Blanco, na época procurador-geral-adjunto do Departamento de Justiça  declara que “o Brasil e os Estados-Unidos trabalharam juntos para obter provas e para construir os casos”. E que é “difícil imaginar uma cooperação tão intensa na história recente como esta entre o Departamento de Estado e os promotores brasileiros”.

Moro e sua equipe começam o ano de 2017 com confiança. Não que tenha, ele e sua equipe, conseguido provas definitivas contra Lula. – suas conversas privadas via Telegram atestam o contrário – mas antes porque sua influência política e midiática é tal que eles vão acumulando vantagem, desprezando, muitas vezes,  os princípios mais elementares do direito.

(…)

Quando Lula foi condenado por “corrupção passiva e lavagem de dinheiro” dia 12 de julho de 2017, poucos jornalistas chamam a atenção para o fato que a sentença foi pronunciada “por fatos indeterminados”. O argumento foi no entanto enunciado explicitamente no documento de 238 páginas da sentença de Moro.

Nos anexos da condenação, o juiz esclarece que “jamais afirmou que os montantes obtidos pela empresa OAS graças aos contratos com a Petrobras foram usados para pagar vantagens indevidas ao ex-presidente”.

Outra coisa estranha reveladora do peso adquirido pela operação “Lava Jato” no poder judiciário brasileiro: a prisão do ex-presidente Lula, contrária à Constituição brasileira. O artigo 5 diz que nenhum cidadão pode ser encarcerado antes do final do processo. No entanto, sob intensa pressão da opinião pública conquistada pela operação “Lava Jato”, o STF mudou sua jurisprudência na matéria desde 2016. O pedido de habeas corpus dos advogados de Lula foi rejeitado por seis vozes contra cinco depois de um tweet do comandante do Exército ameaçando o Supremo Tribunal Federal de “assumir suas responsabilidades institucionais » na hipótese do voto em favor do ex-presidente.

(…)

Horas depois da decisão dos juízes, Sérgio Moro emite um mandado de prisão : Lula é preso dia 7 de abril. Ele não poderá concorrer à eleição presidencial de 2018. Enquanto o magistrado parece dominado pela arrogância, a máquina infernal é lançada. Jair Bolsonaro ganha a eleição presidencial com folga e nomeia aquele que eliminou Lula para dirigir o Ministério da Justiça. Do lado americano, festeja-se o fato de ter afastado os sistemas de corrupção instituídos pela Petrobras e pela Odebrecht, bem como suas capacidades de influência e de projeção político-econômica na América Latina.

Depois da eleição de Bolsonaro, a imprensa internacional não demora a criticar o “justiceiro de Curitiba”. Ela destaca sua incoerência ética fazendo aliança com um presidente de extrema-direita, membro durante décadas de um pequeno partido mais conhecido por numerosos casos de corrupção.

O juízes do Supremo Tribunal Federal, por outro lado, não escondem a estupefação quando descobrem em março de 2019 o acordo secreto entre os promotores da “Lava Jato » e seus pares do Departamento de Justiça.  O juiz Alexandre de Moraes decide suspender a criação da fundação “Lava Jato” e colocar sob sequestro as centenas de milhões de dólares de multas pagas pela Petrobras.

(…)

O STF, por outro lado, reconhece o caráter inconstitucional da prisão de Lula. Ele é libertado dia 8 de novembro de 2019. O ex-presidente foi inocentado de sete das onze acusações contra ele (a promotoria recorreu em quatro casos). Lula deve ser ainda julgado em quatro casos que especialistas julgam sem grande importância.

(…)

Sergio Moro deixa o ministério da Justiça em abril de 2020. A elite política de Brasília lhe vira as costas e as pesquisas de opinião mudam. Ele viaja discretamente a Washington, onde reproduz o modelo das “revolving doors” essas passarelas que permitem aos ex-juízes do Departamento de Justiça que trabalharam em casos ligados ao FCPA de revender a grandes escritórios de advocacia a informação privilegiada obtida durante suas investigações e ganhar, assim, muito dinheiro. O anúncio é feito em novembro de 2020, em plena eleição municipal no Brasil. Descobre-se que o ex-pequeno juiz de Curitiba foi recrutado pelo escritório de advocacia Alvarez & Marsal. Uma agência especializada em conselho de negócios cuja sede, na capital federal, se encontra no 15 Shet NW, em frente ao Tesouro americano e a 200 metros da Casa Branca.


*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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