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Opinião

Jornalismo, democracia, mulheres e delicadezas revolucionárias

Jornalismo, democracia, mulheres e delicadezas revolucionárias

Artigo por RED
16/09/2022 17:29 • Atualizado em 22/09/2022 11:44
Jornalismo, democracia, mulheres e delicadezas revolucionárias

De SANDRA BITENCOURT GENRO*

“Há o que quer que seja desconsolador, quando se escuta a voz delicada duma senhora aconselhando as revoluções”. É desse modo que um escandalizado articulista, Carlos Ferreira, refere-se à Narcisa Amália, em 1872, considerada a primeira mulher a se tornar jornalista profissional no Brasil, na Gazetinha de Resende (RJ), onde publicou artigos em defesa de ideais republicanos, democratas, abolicionistas e feministas. “Eu por mim desejaria que a poetisa estivesse sempre em colóquio com flores, com primaveras e com Deus”, prossegue o crítico. 130 anos depois, um mesmo país, mais amortecido e doente, registra o mesmo incômodo com temas, ideias e firmeza classificadas de impróprias para vozes femininas. Sobram insultos, preconceitos, ameaças da principal autoridade do país. Parte da sociedade cala, alguns poucos concordam e assim a democracia vai sucumbindo. O que pode o jornalismo e qual o dever da comunicação pública diante desse quadro de retrocesso?

São reflexões como essas que pretendo partilhar com vocês neste espaço de diálogo, reflexão e resistência. Permitam-me que me apresente. Sou jornalista, professora e pesquisadora. Sou de esquerda, feminista e humanista. Meus objetos de interesse são a Comunicação Pública – entendida de um modo bem amplo como uma rede que assume a perspectiva cidadã, envolvendo temas de interesse público e coletivo- e o jornalismo, ambos qualificadores da jornada democrática (sempre uma tarefa). Me interessam os aspectos normativos e a factibilidade, que é como de fato ocorrem os processos de construção e distribuição de informação, as dinâmicas de opinião e o papel central que esse campo tem na disputa de projetos, na mediação de interesses e na sustentação democrática. A identidade de um país, de suas comunidades, indivíduos e territórios acontece nesse poderoso espaço simbólico cotidiano de trocas, de emoções, de percepções e narrativas dos fatos.

Podemos tratar a Comunicação Pública então como o espaço de relacionamento cotidiano das instituições públicas com o cidadão. Mas podemos ir além, considerando toda a estrutura de instituições públicas, de organizações e de empresas midiáticas que interagem em torno de temas de interesse comum. Mesmo que a gente entenda Comunicação Pública como a comunicação vinculada exclusivamente a instituições públicas e governamentais, é importante destacar que este espaço e suas práticas são regidos por princípios. A Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública), elencou 12. São eles: 1. Garantir o acesso amplo à informação; 2. Fomentar o diálogo; 3. Estimular a participação; 4. Promover os direitos e a democracia; 5. Combater a desinformação; 6. Ouvir a sociedade; 7. Focar no cidadão; 8. Ser inclusiva e plural; 9. Tratar a comunicação como política de Estado; 10. Garantir a impessoalidade; 11. Pautar-se pela ética; 12. Atuar com eficácia.

Esses princípios devem nortear o modo como instituições do legislativo, executivo, judiciário e sociedade civil se relacionam com as questões da vida, com a promoção dos direitos, com o respeito aos seus cidadãos e cidadãs. Desafio qualquer um que aponte apenas um dos princípios que hoje seja respeitado pelo poder executivo federal.

O modo de comunicar e estabelecer relações do Governo Federal com a imprensa, com os demais poderes e com a sociedade tem um padrão extremamente autoritário. Como a Carta de Conjuntura da ABC Pública de agosto demonstra, a conduta é extremamente hostil, não há reconhecimento do papel social dos jornalistas no exercício da crítica e na fiscalização em torno do dever do Estado de prestar contas aos cidadãos. Desde a investidura do cargo até julho deste ano, o Presidente da República deu 5.813 declarações falsas, de acordo com o levantamento da agência Aos Fatos.

Audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado (Agência Senado, 15/06) mostrou o mapeamento aos ataques contra jornalistas e veículos de imprensa – apontando o enorme volume e a sordidez do método. Apenas em 3 meses, em 2021, foram identificadas mais de meio milhão de postagens e #hashtags de hostilidade a jornalistas e comunicadores que fizeram cobertura jornalística que desagradaram a família do presidente da República, autoridades do governo e apoiadores. O levantamento foi realizado pelos Repórteres sem Fronteiras em parceria com o Instituto de Tecnologia e Sociedade.

O padrão de intimidação só se torna mais grave a cada novo limite transposto pela fúria fascista. O último foi um cartaz gigante reproduzindo frase ameaçadora do Presidente à jornalista Vera Magalhães durante os atos de comício eleitoral no que deveria ser a festa dos 200 anos de Independência. A selvageria é tanta que os progressistas que identificam na mídia de referência parcela substancial da culpa pela criminalização da política e pela ruptura democrática, precisam por de lado suas críticas para fazer a defesa do jornalismo profissional, da liberdade real de expressão e das mulheres jornalistas que não por acaso são mais atacadas e ameaçadas.

Estes tempos de misoginia brutal, de preconceitos e de mentiras fabricadas para diminuir e insultar mulheres não nos permitem falar de flores. Mas a delicadeza permanece em nós. A primavera está chegando. Tecer uma nova estação com mãos firmes e vozes femininas pode ser revolucionário. O momento é decisivo. Nos vemos por aqui.

*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Foto em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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