Opinião
Israel-Palestina: um barril de pólvora
Israel-Palestina: um barril de pólvora
De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris
“Pogrom¹” e “esquadrões da morte” entraram no vocabulário de israelenses para definir a brutalidade da colonização que já dura 56 anos.
A expedição punitiva que colonos israelenses armados fizeram na cidade de Huwara, na Cisjordânia, dia 26 de fevereiro, incendiando casas, comércios e carros foi chamada por muitos em Israel de “pogrom”, uma palavra rica de sentido para quem conhece a história do antissemitismo europeu que culminou no Holocausto.
Yehuda Fuchs, chefe do Exército israelense para a Cisjordânia (que os militares chamam de “região central”), ocupada por Israel desde 1967, qualificou de pogrom a ação de violência inédita. O termo foi empregado também pelo escritor Etgar Keret, de quem o jornal Libération publicou um texto dia 3 de março, reconstituindo a violência praticada por 400 colonos incendiando casas palestinas e agredindo seus moradores. Saldo: um morto, dezenas de feridos graves e uma cidade em parte incendiada. Keret não vê outro termo senão pogrom para o que se passou em Huwara.
As expedições feitas pelo exército nas cidades e vilarejos palestinos vêm sendo qualificadas de “esquadrões da morte” pois deixam corpos de jovens palestinos sem vida por onde passam.
O comentarista israelense Nahum Barnea chegou a chamar os incêndios e a violência em Huwara de “Noite de Cristal”, um pogrom organizado na Alemanha pelos nazistas contra os judeus, em 1938.
Os Estados Unidos qualificaram de “repugnante” a incitação do ministro das Finanças israelenses, Bezalel Smotrich, para que Huwara “seja totalmente destruída pelo exército”. A comunidade judaica americana também usou o termo “repugnante” para qualificar essa incitação à destruição. Mas isso não impediu que o ministro Smotrich confirmasse sua ida a Washington para falar aos dirigentes da organização Israel Bonds.
Haggai Matar, opositor ao atual regime israelense, escreveu na revista online 972+: “Huwara não é a história de dois campos que se enfrentam. É a história de uma superpotência regional que esmaga milhões de pessoas que não têm nenhum direito”.
Gédéon Levy, um dos principais cronistas do jornal Haaretz, comparou o pogrom de domingo, 26 de fevereiro, à destruição de Sabra e Chatila e acusou as agências de segurança israelenses de não terem impedido a brutalidade dos colonos “seja por apatia, seja por terem decidido deliberadamente fechar os olhos”.
Em artigo publicado no Libération em dezembro passado, o escritor israelense David Grossman ansiava pelo fim da “maldita ocupação” e previa: “A boca aberta da anarquia ameaça engolir a mais frágil democracia do Oriente Médio”.
“São neonazistas”
Israel vive a pior crise de sua história desde a criação do Estado, em 1948.
A constatação é do historiador israelense Daniel Blatman, em entrevista ao jornalista René Backmann, do site francês Mediapart. Depois do incêndio pelos colonos israelenses, em 26 de fevereiro, da cidade palestina de Huwara, na Cisjordânica ocupada, como represália à morte de dois colonos e depois de vários enfrentamentos e atentados anteriores entre israelenses e palestinos, o especialista do nazismo e do genocídios dos judeus ousa fazer a comparação: os projetos políticos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahou lembram o fim da República de Weimar, com a chegada de Hitler ao poder.
Blatman não afasta a possibilidade de uma guerra civil:
“Se homens como Bezalel Smotrich (ministro das Finanças) ou Yariv Levi (ministro da Justiça) dirigissem grupos políticos hoje na França, na Alemanha ou em qualquer democracia ocidental, seriam considerados neonazistas. Eles não são de extrema direita, estão muito além. Digo e insisto: são neonazistas. Dizer que se prepara em Israel algo semelhante ao que são hoje a Hungria e a Polônia é falso. É muito pior. Estamos mais próximos da Turquia. Entre a Turquia e o Irã”, diz o historiador do nazismo.
A situação pode se deteriorar em condições nunca vistas no país, segundo Blatman. “Por isso comparei com a Alemanha de 1933. Se o governo conseguir impor o que chama de ‘reforma do sistema judiciário’ entramos em uma nova realidade. A decisão de Macron de receber Nétanyahou em Paris foi particularmente estúpida. Foi o único chefe de Estado do Ocidente a receber o primeiro-ministro israelense depois da volta deste ao poder”.
Reforma da Justiça leva à ditadura de extrema-direita
Além da violência contra os palestinos, que faz parte do método da ocupação desde 1967, os israelenses estão vendo multidões saírem às ruas para protestar contra a reforma da Justiça, que pode levar o país a se transformar em uma ditadura de extrema-direita, exatamente como a Alemanha de 1933, depois da chegada de Hitler ao poder e do incêndio do Reichtag, encomendado pelos nazistas e atribuído aos comunistas. Esses acontecimentos geraram a lei de plenos poderes para Hitler e a prisão de comunistas e socialdemocratas, enviados aos primeiros campos de concentração do regime nazista.
Desde que ocupou a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Leste em 1967, Israel vem acumulando crimes de guerra e ignorando as resoluções da ONU. Ao mesmo tempo, o país que pratica um apartheid de fato e gravado nas leis discriminatórias, se apresenta como “a única democracia do Oriente Médio” na propaganda disseminada pelo mundo.
A guerra da Ucrânia, que completou um ano, veio invisibilizar ainda mais esta ocupação violenta que os jornais chamam de “conflito”, que tende a se eternizar por uma espécie de normalização. A anexação de fato da Cisjordânia e de Jerusalém Leste pode vir a ser efetivada por lei a qualquer momento, sob o silêncio ensurdecedor da “comunidade internacional”.
Em total sintonia com os ucranianos, o “Ocidente” só tem olhos para ver uma invasão inaceitável e escandalosa: a da Ucrânia pela Rússia.
“O silêncio dos aliados ocidentais quanto à colonização na Cisjordânia e ao desprezo cotidiano dos direitos mais elementares dos palestinos só levou Israel a reforçar as posições mais extremas. Este silêncio acelerou a impossibilidade de uma solução com dois Estados”, dizia o Le Monde em editorial recente.
Os palestinos têm que contar com seus próprios recursos para resistir à violência e à força de um exército superequipado de uma potência nuclear. Alguns países árabes, como os Emirados Árabes Unidos e Barhein, tradicionais aliados da causa palestina, assinaram acordos com Israel, os denominados “acordos de Abraão”, incentivados pela administração Trump, a mais pró-Israel que os Estados Unidos já tiveram.
Trump chegou a reconhecer Jerusalém como capital de Israel e transferiu a embaixada america de Tel-Aviv para a cidade santa. A medida é uma provocação diante do direito internacional que reconhece Jerusalém Leste como a futura capital do Estado Palestino, que nunca saiu do papel dos acordos de paz e tem cada vez menos condição de vir a existir, na opinião de analistas.
Governo neofascista
A cobertura da nova onda de violência no Oriente Médio com seu cortejo de mortes e destruições merece sempre bons espaços na grande imprensa francesa de esquerda (Le Monde, Libération e L’Humanité) com a advertência para os riscos de escalada.
Um recente editorial do Le Monde (18 de fevereiro) alertava para o perigo da reforma do Poder Judiciário em vigor no qual a Suprema Corte “concentra poderes imensos sendo, ao mesmo tempo, tribunal de recurso administrativo, civil e penal, além de Conselho Constitucional “. O risco da reforma é grande pois pretende esvaziar a Suprema Corte reforçando o poder Legislativo e Executivo, atualmente com evidente desenho neofascista e forte influência dos religiosos ultra ortodoxos.
O editorial do Le Monde destacava o risco para a democracia de uma reforma da Justiça prestes a ser implantada pelo governo de extrema-direita no poder em Israel. Tal reforma deixaria a Justiça à mercê do poder político-militar :
“A Suprema Corte nunca foi o bastião irrepreensível de defensores das minorias, dos direitos humanos e da democracia, como querem os que a defendem hoje. Com total desprezo pelo direito internacional, seus juízes deixaram o executivo incentivar, desde 1967, a colonização dos territórios palestinos. Eles contribuíram para enraizar nos territórios um regime legal duplo, que oferece aos colonos israelenses a proteção de um aparato jurídico próximo daquele do qual se beneficia todo cidadão do Estado hebraico e que deixa os palestinos à mercê da arbitrariedade militar”.
O médico Rony Brauman, um dos fundadores da ONG “Médecins sans Frontières” (Médicos sem Fronteiras), costuma falar do conflito Israel-Palestina como de uma “guerra totalmente assimétrica”, que envolve um dos exércitos mais bem armados do mundo e um povo que fabrica armas artesanalmente. Ele considera Israel um “guetto superarmado”, como escreveu em artigo do livro “Antissemitismo, a intolerável chantagem-Israel-Palestina, um affaire francês?” (L’antissemitisme, l’intolérable chantage-Israël-Palestine une affaire française?) que traduzi para o português.
Num documentário recente chamado “Not in my name”, alguns judeus franceses criticavam as arbitrariedades cometidas por Israel e os riscos que a colonização comporta. O título do filme retoma o nome de um grupo de judeus americanos que desaprovam a ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Leste por Israel e condenam a política colonialista do Estado judaico. Eles não admitem que “os crimes de Israel contra o povo palestino, inclusive ignorando diversas resoluções da ONU, sejam imputados a todos os judeus do mundo”.
O historiador Daniel Blatman afirma, preocupado :
“Não precisamos de uma guerra civil nem de uma guerra mundial para provocar o desmoronamento de um Estado. Na Alemanha, seis ou sete meses foram suficientes em 1933 para que a democracia desaparecesse até 1945. A decisão de Biden de não receber Netanyahou na Casa Branca depois da posse deste é um ato político. O isolamento diplomático em que se encontra Netanyahou é uma das raras formas de pressão que podem gerar consequências”.
*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.
¹Termo frequentemente atribuído à perseguição deliberada de um grupo étnico ou religioso, aprovado ou tolerado pelas autoridades locais, sendo um ataque violento massivo, com a destruição simultânea do seu ambiente.
Imagem de incêndios e destruição em Huwara na noite de 26 de fevereiro – reprodução de vídeo na internet.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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